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Márcio Moraes
no leito solidário de uma floresta altiva descansem por favor a minha poesia
Textos

Mantenha fora do alcance do bebê, de Silvia Gomez

por Márcio Ariano Moraes

A peça Mantenha fora do alcance do bebê, escrita por Silvia Gomez e encenada em 2015 no Centro Cultural São Paulo, tensiona, de modo cruel e ao mesmo tempo poético, os limites entre o humano e a mercadoria, a vida e o consumo, a maternidade como afeto e a maternidade como norma social. A obra coloca o espectador diante de um espelho desconfortável: até que ponto nossa sociedade já não transformou o viver, o nascer e até o desejar em produtos de prateleira?

 

A trama se desenvolve em um espaço burocrático, um escritório de repartição pública, onde uma mulher inominada, identificada apenas como Mulher 1, é entrevistada por uma funcionária (Mulher 2) para um processo de adoção. O marido, Rubens, aparece mais tarde, mas permanece como figura secundária, exausto e quase apagado. No canto do palco, a presença do lobo (real ou holográfico) intensifica o clima de ameaça, funcionando como metáfora de uma violência potencial e inescapável.

 

O que poderia ser um diálogo formal sobre os critérios para adotar uma criança vai se transformando em uma experiência inquietante que beira ao absurdo. Mulher 1 não fala da adoção como um gesto de amor, mas como uma aquisição. Pergunta sobre roupas, kits prontos, configurações ideais do bebê, como se este fosse um produto à venda em um supermercado. A linguagem da publicidade e do consumo infiltra-se na relação com a maternidade, reduzindo-a a uma escolha customizável. Essa visão é atravessada por listas obsessivas de tarefas, entre compras de fósforos, detergentes, pacotes turísticos, desejos sexuais e instruções de explosivos, que misturam o banal ao absurdo, o cotidiano ao caos.

 

Há momentos em que Mulher 1 tenta quebrar o silêncio com frases desconexas; em outros, a burocrata, inicialmente fria, deixa escapar confissões de cansaço, gastrite e desprezo pelas pessoas que atende. O humor é ácido, revelando a alienação, a solidão e a falta de sentido que corroem as personagens.

 

A maternidade, tema central da obra, é tratada como imposição social. Não se apresenta como desejo espontâneo, mas como norma de adequação: ser mãe é cumprir um requisito de vida bem-sucedida, assim como ter um carro, pagar o condomínio, manter estoques de fósforos (uma espécie de neurose da Mulher 1) ou consumir produtos de higiene. O bebê, assim, se torna apenas mais um item da lista. Nesse ponto, a peça toca em um aspecto doloroso: a adoção, que deveria ser gesto de acolhimento, é instrumentalizada como forma de preencher vazios, responder a expectativas ou satisfazer a lógica de consumo.

 

Ao mesmo tempo, a peça sugere a existência de um trauma anterior. A insistência em “explodir” o estabelecimento de saúde, a mistura de perda com ressentimento e o desespero de Mulher 1 indicam que já houve um bebê anterior, possivelmente morto ou perdido em circunstâncias dolorosas. Esse passado silenciado retorna como fantasma em cada fala, reforçando a noção de que a tentativa de substituir uma vida por outra é sempre fracassada. Assim, a adoção não surge como esperança, mas como repetição de uma ferida não elaborada.

 

A violência percorre toda a obra, ora explícita, ora insinuada. A obsessão com explosivos, as falas sobre destruição, o gesto final de Mulher 1 ao revelar-se como mulher-bomba: tudo aponta para um mundo em que a pulsão de morte se mistura ao cotidiano. A violência não é apenas contra o outro, mas contra si mesma, contra a impossibilidade de existir em meio a tantas exigências. O lobo, nesse contexto, é metáfora do  animal selvagem, presença constante, simbolizando tanto a ameaça externa quanto o instinto reprimido, lembrando que a vida civilizada carrega sempre a sombra da barbárie. Ele é o único que resta após a contagem regressiva, de mãos dadas, para a explosão. Quando a luz retorna, os personagens desaparecem. Resta apenas o lobo. O animal sobrevive ao humano, persistindo como alegoria da ameaça, da natureza instintiva, do que não pode ser domesticado.

 

Mantenha fora do alcance do bebê é, assim, uma peça sobre a distopia já presente em nosso cotidiano. Não se trata de um futuro distante, mas de um agora em que desejos são mediados por consumo, vidas são avaliadas por critérios burocráticos e emoções se reduzem a produtos agregados. O bebê é apenas o signo maior de nossa tentativa de controlar a existência, de formatar o outro para caber em nossos desejos e listas de tarefas. O lobo, por sua vez, é o lembrete de que não há controle absoluto, de que a violência e a animalidade continuam à espreita. Entre o riso e a angústia, a peça nos devolve uma pergunta essencial: o que significa, afinal, ser humano em uma sociedade que trata afetos, vidas e sonhos como mercadorias?

 

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Márcio Adriano Moraes
Enviado por Márcio Adriano Moraes em 16/08/2025
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