por Márcio Adriano Moraes
Publicado postumamente em 2010 pela Companhia das Letras, Obra completa reúne os 33 contos que consagram o mineiro Murilo Rubião (1916-1991) como mestre do realismo fantástico no Brasil. Suas narrativas fundem cotidiano e insólito, apresentando mundos regidos por lógicas próprias, em que o tempo e o espaço se deformam e as identidades se fragmentam.
O autor alterna narradores em primeira e terceira pessoa, ora oniscientes (O edifício), ora limitados (O bloqueio). O tempo pode ser linear, como em A fila, ou psicológico e fragmentado, como em Epidólia. A repetição e o ciclo narrativo são marcas frequentes, reforçando a sensação de aprisionamento.
Entre as temáticas mais recorrentes está a metamorfose: Teleco, o coelhinho explora a perda da essência ao tentar se adaptar; Alfredo mostra a fuga da condição humana por meio de transformações. O absurdo institucional surge em A fila e Botão-de-Rosa, em que burocracia e justiça se tornam mecanismos de exclusão e violência. O aprisionamento físico ou simbólico marca contos como A armadilha, prisão do ressentimento, e Os comensais, limbo sem saídas. O desejo impossível domina Elisa e A noiva da Casa Azul, histórias de amores que nunca se concretizam ou sobrevivem apenas na memória delirante. O insólito é naturalizado: Os dragões trata criaturas míticas como moradores comuns; O homem do boné cinzento apresenta dissolução corporal sem explicação. Há também a lógica deformada de Memórias do contabilista Pedro Inácio e o ciclo infinito de assassinatos em Os três nomes de Godofredo.
Rubião constrói cidades alegóricas (A cidade, Mariazinha), casas que materializam estados psíquicos (Petúnia) e construções que simbolizam alienação (O edifício). Espaços fechados frequentemente representam prisão existencial. Quanto às suas personagens, são figuras deslocadas e impotentes diante do destino, como Zacarias, o morto que narra sua própria vida; Pererico, esmagado pela burocracia; e Jadon, que perde a identidade no convívio com mortos-vivos sociais. Relações se degradam, amizades abusivas (O bom amigo Batista), casamentos sufocantes (Aglaia), e o afeto é atravessado por interesse ou frustração.
A escrita é econômica, com imagens insólitas, diálogos elípticos e humor sombrio. O tom onírico se combina à alegoria, e as epígrafes bíblicas ampliam o sentido moral e existencial. Dialogando com Kafka, Borges e o realismo mágico latino-americano, o insólito, longe de ser fuga, revela a precariedade das certezas humanas e denuncia opressões, mostrando que ordem social, amor e identidade são frágeis e instáveis.
Abaixo segue uma síntese do tema/enredo de cada um dos 33 contos:
O pirotécnico Zacarias: após ser atropelado, Zacarias segue consciente, mas rejeitado como vivo e como morto, torna-se invisível socialmente, numa busca de endentimento de sua condição e dos homens.
O ex-mágico da Taberna Minhota: um homem surge como mágico, mas vê seu dom transformar-se em fardo, tenta anular-se no funcionalismo público, fracassando também no amor, e ficando preso entre a criação estéril e o vazio existencial.
Bárbara: esposa de desejos infinitos que rejeita o próprio filho e arruína emocional e financeiramente o seu marido, o qual se anula ao servir os impulsos desvairados da mulher.
A cidade: Cariba chega a um povoado aparentemente deserto, é preso por “fazer perguntas” e condenado pelo simples ato de pensar. O autoritarismo e a repressão ao pensamento crítico mostram um mundo onde a lógica é inútil e a diferença, perigosa.
Ofélia, meu cachimbo e o mar: um homem solitário, fumando cachimbo, fala de seu sonho frustrado de ser homem do mar, tendo sua cadela Ofélia como ouvinte, sustentando-se em memórias incertas de antepassados navegadores.
A flor de vidro: Eronides, recluso e nostálgico, revive intensamente o amor por Marialice quando ela retorna, misturando lembrança e desejo. O reencontro devolve-lhe a juventude, durante um curto tempo, ficando cego porém, espécie de punição por tentar eternizar um passado que não pode ser preservado.
Os dragões: dragões chegam a uma pequena cidade, onde acabam sendo domesticados ou rejeitados. O dragão Odorico é morto por transgredir normas, e o dragão João foge ao atingir a maturidade, revelando que o diferente não encontra lugar nesse espaço provinciano.
Teleco, o coelhinho: Teleco, um coelho que se metamorfoseia em vários animais, convive com o narrador, até decidir tornar-se homem para viver com Tereza, despertando o ciúme e a rejeição do amigo. Expulso, Teleco retorna doente e, após sucessivas transformações, morre como uma criança nos braços do amigo.
O edifício: o engenheiro João Gaspar é designado para construir um edifício sem fim. Após seus superiores morrerem, tenta parar a construção, mas os operários prosseguem por conta própria, movidos apenas pelo hábito de construir.
O Lodo: Galateu recusa a terapia com o Dr. Pink e passa a ser perseguido pelo médico e vê seu corpo manifestar feridas misteriosas nos mamilos. Isolado e dominado pela irmã Epsila, perde a saúde, autonomia e identidade, até morrer em um ritual de abertura da ferida diante do médico e da irmã.
A fila: Pererico chega à cidade para cumprir uma missão sigilosa, mas acaba vivendo uma espera interminável para ser recebido pelo gerente da companhia. Ao descobrir que o este morreu e que foi o único a não ser atendido, retorna, derrotado, à sua terra natal.
A Casa do Girassol Vermelho: após a morte do tirano Simeão, jovens adotados por ele vivem a libertinagem, memorando um passado de opressão e violência na Casa do Girassol Vermelho.
Alfredo: Joaquim Boaventura reencontra o irmão Alfredo metamorfoseado em dromedário na tentativa de escapar a dor humana. Rejeitado pela cunhada e sem lugar no mundo, Alfredo regressa à serra com o irmão, numa travessia que reafirma a errância e a impossibilidade de encontrar humanidade.
Marina, a intangível: José Ambrósio, jornalista solitário com bloqueio criativo, é instigado por um homem estranho a escrever sobre Marina, figura que mistura erotismo e santidade. A criação artística é uma experiência mística, e a linguagem se torna impotente diante do indizível.
Os três nomes de Godofredo: Godofredo ou João de Deus ou Robério vive num ciclo de relações amorosas que começam com desejo e terminam em estrangulamento, sempre com mulheres quase idênticas. Sem memória clara dos fatos, ele aceita novas identidades e repete o crime, preso a um padrão de paixão, tédio e violência.
Memórias do contabilista Pedro Inácio: Pedro Inácio, contador meticuloso, revisita suas experiências amorosas e investiga de forma obsessiva sua genealogia, buscando explicar a calvície e o destino romântico herdado.
Bruma (A Estrela Vermelha): Godofredo, corroído por ciúmes entre o irmão Og e Bruma, tenta separá-los, levando-os à cidade sob o pretexto de tratamento médico. Ao abandoná-los, acredita ter triunfado, mas descobre que o consultório nunca existiu.
D. José não era: D. José, homem pacífico e excêntrico, é alvo constante de boatos que o acusam de violência, loucura e misantropia, apesar de sua vida pacata dedicada à esposa, aos pássaros e à escrita sobre duendes. Após seu suicídio, é homenageado com uma estátua.
A lua: o narrador segue obsessivamente Cris, registrando seus gestos e trajetos sem nunca ser notado, até matá-lo numa noite em que o percurso muda. Do corpo do morto emerge a lua, acolhida com pranto por uma meretriz antes de subir ao céu.
A armadilha: Alexandre Saldanha Ribeiro retorna à cidade e acaba preso num prédio abandonado com um velho que o aguardava há anos, armado com um revólver descarregado. Incapazes de matar ou fugir, permanecem trancados juntos, condenados a uma convivência interminável.
O Bloqueio: Gérion isola-se num apartamento para fugir da esposa controladora, mas passa a ouvir ruídos e ver sinais de uma máquina que destrói o prédio de cima para baixo e de baixo para cima, cercando-o.
A Diáspora: Roque Diadema, engenheiro respaldado por documentos legais, impõe a construção de uma ponte em Mangora contra a decisão da comunidade, comprando terras e promovendo uma ocupação que degrada o espaço e dissolve suas lideranças.
O homem do boné cinzento: Anatólio, homem enigmático que habita um casarão decadente, passa a ser observado obsessivamente por Artur e, depois, pelo narrador, até que seu corpo se torna translúcido e ele se desfaz em combustão espontânea.
Mariazinha: Josefino revive, em fluxo onírico, sua história de amor e desilusão com Mariazinha, retornando magicamente ao passado para repetir tragédias. Ao descobrir a infidelidade da jovem, ele sucumbe à bebida e ao suicídio.
Elisa: o narrador acolhe Elisa em sua casa, apaixona-se em silêncio, e a perde duas vezes por sua natureza errante, deixando apenas o vazio da ausência e a lembrança do que não foi vivido.
A Noiva da Casa Azul: o narrador retorna a Juparassu movido pela saudade e pela carta de Dalila, mas encontra apenas uma cidade em ruínas, marcada pela epidemia e pela morte da amada.
O bom amigo Batista: José narra a amizade de toda a vida com Batista, ignorando ou reinterpretando abusos, traições e manipulações como gestos de afeto. Mesmo ao descobrir que o amigo vive com sua esposa, prefere acreditar que foi por altruísmo.
Epidólia: Manfredo mergulha numa busca obsessiva por Epidólia, cuja imagem se desfaz em versões contraditórias, transformando-a em uma figura inalcançável. À medida que procura, perde referências de tempo, espaço e identidade.
Petúnia: Éolo, incapaz de aceitar a morte das três filhas, mergulha num ciclo delirante de luto e culpa, marcado por rituais obsessivos: maquiar o retrato da mãe morta, desenterrar as meninas e arrancar flores negras que brotam do corpo da esposa.
Aglaia: Colebra e Aglaia, unidos por interesse e prazer, veem o pacto de não terem bebês ruir diante de gestações sucessivas, transformando a casa num espaço caótico tomado por filhos monstruosos.
O convidado: José Alferes, homem solitário, aceita um convite misterioso que o leva a uma festa estranha na qual pessoas estão à espera de um convidado que poderia ser inclusive ele mesmo; porém a esquisitice do ambiente o levar a fugir, mas percebe que está aprisionado num ciclo absurdo em que identidade e sentido se desfazem.
Botão-de-Rosa: um guitarrista sensível e extravagante é falsamente acusado, primeiro de engravidar várias mulheres e depois de tráfico de drogas, sendo condenado à morte por um julgamento manipulado pelo juiz local.
Os comensais: Jadon, intrigado com um refeitório onde ninguém come nem interage, tenta provocar os outros frequentadores, mas encontra apenas indiferença. Ao perceber que todos ali estão presos num limbo sem tempo ou saída, desmaia e, ao acordar, rejuvenesce, perde a memória e passa a integrar o grupo dos comensais.