por Márcio Adriano Moraes
A obra Pão e Circo (2012), do artista mineiro Paulo Nazareth, é composta por três registros fotográficos em que o próprio artista aparece como modelo, apresentando pães amarrados com barbante sobre a boca, os olhos e os ouvidos. Dispostos lado a lado, os retratos nos remetem de imediato à conhecida imagem dos Três Macacos Sábios, cujos gestos correspondem ao provérbio “não veja o mal, não ouça o mal, não fale o mal”.
Embora a referência à tradição budista seja clara, o que Nazareth realiza em sua obra é um deslocamento crítico dessa máxima: se na sabedoria oriental o gesto de ocultar os sentidos visa proteger a mente do mal e cultivar a paz interior, em Pão e Circo os mesmos gestos denunciam um contexto de silenciamento forçado, alienação social e apagamento histórico, especialmente sobre o corpo negro e periférico no Brasil contemporâneo.
Na tradição filosófica japonesa, especialmente no budismo Tendai, os três macacos (Mizaru, Kikazaru e Iwazaru) representam a conduta sábia de evitar o mal: não o ver, não o ouvir, não o dizer. Esse ensinamento, que tem o objetivo de promover a harmonia e a autorreflexão espiritual, também foi reinterpretado no Ocidente em diversas versões, muitas vezes esvaziadas de seu sentido ético original.
Paulo Nazareth apropria-se dessa iconografia milenar e a ressignifica em chave política, crítica e racializada. Em vez de três macacos, temos um homem negro. Em vez de gestos voluntários de contenção sensorial, vemos um corpo amarrado, interditado, silenciado, cego, ensurdecido à força. O que era princípio de autocontrole e sabedoria espiritual, torna-se aqui imagem de denúncia de um processo histórico de opressão sistemática.
O título da obra, por sua vez, remete à expressão latina panem et circenses (pão e diversão), usada por poetas como Juvenal, na Roma Antiga, autor das famosas Sátiras (séc. I e II) para denunciar a política de oferecer alimento e entretenimento ao povo como forma de apaziguar sua insatisfação política e distraí-lo das injustiças do império. Paulo Nazareth atualiza essa crítica ao utilizar o pão francês ou pão de sal – símbolo da alimentação básica popular no Brasil – como instrumento de censura e controle.
Assim, propomos a seguinte possibilidade de leitura: o pão que cobre a boca representa o silêncio comprado pelo alimento mínimo, o que se aproxima da crítica ao assistencialismo populista; o pão sobre os olhos é símbolo da cegueira alimentada pela ilusão de progresso; enquanto o pão sobre os ouvidos revela a incapacidade de ouvir o outro, de escutar as vozes das periferias, das ancestralidades, das resistências.
Paulo Nazareth, ao escolher o próprio corpo como suporte artístico, inscreve-se na tradição da arte-performance contemporânea ou body art que faz do corpo um meio de resistência e denúncia. No Brasil, onde o corpo negro historicamente foi objetificado, explorado e criminalizado, a imagem de um homem negro que se coloca como protagonista visual e simbólico de uma crítica social é um gesto profundamente político. Nesse contexto, o corpo do artista não é passivo: é imagem que fala sem palavras, grita em silêncio, recusa a invisibilidade. Seus cabelos crespos, sua pele negra, sua expressão frontal e fixa, tudo nele é escolha estética e política, convocando o espectador à responsabilização. O artista nos olha mesmo quando os olhos estão cobertos. Ele nos ouve mesmo com os ouvidos interditados. Ele nos diz o que é preciso mesmo com a boca amarrada.
A obra também pode ser lida como uma crítica à estrutura midiática e institucional que perpetua a exclusão racial e de classe no Brasil. Ao evocar o provérbio “não veja, não ouça, não fale”, Paulo Nazareth parece apontar para uma sociedade que, diante da violência contra os corpos negros, prefere não ver, não escutar e não falar, garantindo, com isso, a manutenção de seus privilégios. Mas há também o aspecto de internalização: o corpo negro, nas estruturas de opressão, muitas vezes aprende a não dizer o que pensa, a não ver sua própria história, a não ouvir sua própria voz. A obra nos questiona com esse pacto perverso entre dominação e silêncio, denunciando a naturalização do racismo e da desigualdade como parte do cenário nacional.
O uso de elementos simples como o pão, a corda e o fundo branco reforça o impacto visual da obra que traz o mínimo de material para alcançar o máximo de potência simbólica. Os pães são reconhecíveis, familiares, triviais, do dia a dia, o que faz com que a imagem nos afete diretamente, pois há um choque entre o comum e o absurdo, entre o cotidiano e o alegórico. Contudo, o gesto de amarrar o pão no rosto revela um deslocamento de sentido: o alimento torna-se mordaça, venda, obstáculo à escuta. A naturalidade desses objetos enfatiza o quanto a violência pode parecer normal quando já está incorporada aos gestos mais simples da vida. Essa escolha estética dialoga com os princípios da arte contemporânea que valoriza a experimentação e interação.
Assim sendo, apesar do silêncio literal da imagem, Pão e Circo não é uma obra muda; pelo contrário, ela convoca à escuta crítica, um chamado para posicionamento. A arte aqui não consola, mas incomoda. Não adormece, mas desperta. Ela propõe ao observador uma inversão: e se fôssemos nós a termos os olhos tapados, os ouvidos vedados e a boca calada? Logo, a obra nos convida a romper com esse ciclo, ou seja, a ver, a ouvir, a falar. A romper com o conformismo do pão barato e do circo alienante. A escutar os gritos abafados da história. A reabrir os olhos para as injustiças estruturais. A abrir a boca não para o consumo, mas para o discurso transformador.
Pão e Circo, de Paulo Nazareth, é, portanto, uma obra de síntese: ela condensa tradição filosófica oriental, crítica histórica ocidental e denúncia social brasileira num único tríptico visual. Utilizando apenas três imagens, o artista constrói um enredo sobre o silenciamento histórico do povo negro, sobre a manipulação simbólica das massas e sobre a possibilidade de resistência através da arte. Reinterpretando o provérbio milenar dos “Três Macacos Sábios”, Paulo Nazareth não renega seu princípio ético, mas o reposiciona em um campo político urgente. Em vez de evitar o mal para manter a paz, ele escancara o mal para buscar a justiça. A obra, assim, transforma silêncio em fala, cegueira em visão crítica, surdez em escuta ativa.