por Márcio Adriano Moraes
A canção “Principia”, lançada como faixa de abertura do álbum AmarElo (2019), é um manifesto lírico, filosófico e espiritual do rapper paulista Leandro Roque de Oliveira, mais conhecido como Emicida . Com uma estrutura híbrida que alterna trechos de rap, poesia falada, canto e pregação, a composição propõe uma reflexão sobre a condição humana, a desigualdade social, a resistência negra, o papel do amor e da coletividade na superação das dores e o resgate do sentido da vida num mundo marcado pela violência, individualismo e desesperança. Trata-se de um texto profundamente simbólico, intertextual e existencial, que convida à escuta afetiva e à escuta política.
O título “Principia” evoca o verbo latino principiare, que significa “começar”, “iniciar”, “dar origem”. É também uma referência à obra científica Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural), de Isaac Newton (1643-1727), publicada entre o final do século XVII e início do século XVIII, na qual o físico busca pelas leis fundamentais da existência. Porém, ao contrário de leis da física, Emicida procura os princípios que regem a espiritualidade, o pertencimento e a humanidade, lançando mão de uma poética de reconexão com a essência, isto é, com o essencial.
Logo nos primeiros versos, o eu lírico revela um campo de forças espirituais diversas: “O cheiro doce da arruda, penso em Buda calmo / Tenso, busco uma ajuda, às vezes me vem o Salmo”. A arruda, planta protetora usada em rituais afro-brasileiros, encontra o Buda, símbolo da serenidade oriental (Budismo), e o Salmo, herança judaico-cristã. Essa mistura evoca o sincretismo religioso tão presente na formação cultural brasileira. Emicida não se prende a dogmas, valorizando o sagrado como força de cura e resistência.
A citação a “Ubuntu”, filosofia sul-africana que significa “eu sou porque nós somos”, fundamenta um dos eixos centrais da canção: a defesa de uma ética comunitária, afetiva e solidária, em contraposição à lógica individualista do mundo capitalista.
A partir dos versos “Resumo do plano é baixo, pequeno e mundano / Sujo, inferno e veneno”, o eu lírico traça um retrato sombrio da realidade brasileira. O vocabulário remete à degradação social, à violência e à opressão sistêmica. Em versos como “É um luxo ter calma, e a vida escalda / Tento ler almas pra além da pressão”, Emicida denuncia a constante tensão vivida, principalmente pelas populações periféricas, que enfrentam o racismo, a violência policial, a pobreza e a exclusão como parte do cotidiano.
A crítica se aprofunda na metáfora dos “livros” frente à ignorância (“Só prova a urgência de livros perante o estrago que um sábio faz”), ou seja, o perigo de estarmos sujeitos a uma pessoa que se diz detentora de um conhecimento manipulável. Tal “sábio”, sabendo da superficialidade intelectual dos que estão sob sua responsabilidade/proteção usufrui de seu poder de convencimento para instruir pessoas a seu próprio interesse. Importante lembrar do contexto histórico de 2019, marcado não só pela Pandemia, mas também por uma série de fake news que guiaram o pensamento de muitos, além de pregações anticiência. Complementando o verso citado, há o paradoxo das “lágrimas livres”, única coisa que ainda escapa ao controle repressivo. Aqui, dessa forma, o rapper articula uma crítica à precarização da educação, à perda do valor do conhecimento e à barbárie institucionalizada.
Adiante, o eu lírico afirma: “Eu voltei pra matar, tipo infarto / Depois fazer renascer, estilo parto”. A imagem da morte e do renascimento aponta para uma reconstrução identitária – pessoal e coletiva – a partir da dor. A lírica se reconfigura como processo: descartar, repartir, repartir-se. Emicida apresenta-se como homem comum, mas com uma missão: “Se a bênção vem a mim, reparto”. Ele propõe a partilha como gesto ético e espiritual, uma antítese do acúmulo e da desigualdade.
O refrão, bem marcado na oralidade: “Tudo que nóis tem é nóis” funciona como um mantra coletivo. A repetição reforça a ideia de que, em um mundo em que tudo pode ser retirado: direitos, terras, corpos, vidas , resta-nos o elo humano. O sentido de comunidade ressurge como refúgio e resistência.
Os versos “Cale o cansaço, refaça o laço / Ofereça um abraço quente” são uma convocação ao acolhimento. A música é descrita como “uma semente”, uma metáfora que sugere crescimento, transformação, vida. Já o “sorriso” é a “única língua que todos entende”: linguagem não-verbal, mas universal, afetiva, profunda. Em tempos de polarizações (atentar-se para o contexto político, não só do momento de enunciação da música, mas também do presente), Emicida propõe uma gramática da ternura, em que o afeto é a base da comunicação. Aí, vem a imagem do girassol, que “busca o sol”, como um símbolo de esperança, de luz, de direcionamento. É um gesto poético que nos chama a olhar para o que há de luminoso, mesmo em meio à escuridão social.
Emicida inscreve a negritude no cerne de sua poética. Ao afirmar “Tudo que bate é tambor / Todo tambor vem de lá / Se o coração é o senhor, tudo é África”, ele conecta ritmos, espiritualidade e origem. África não é apenas um continente, mas um símbolo de resistência, sabedoria, origem e musicalidade. A poesia reativa a ancestralidade como força vital e revolucionária. Versos como “Enquanto a terra não for livre, eu também não sou” e “No caminho da luz, todo mundo é preto” expressam uma filosofia de afirmação da identidade negra e uma crítica ao racismo. A poesia torna-se aqui meio de denúncia e também de cura. O corpo negro, tantas vezes marginalizado, torna-se templo, lugar de luz e beleza.
A parte final da canção é um discurso sobre o amor, quase como uma homilia. Inclusive, na gravação original, é declamada pelo pastor Henrique Vieira. Nesse trecho, Emicida afirma: “Seria. Sim, seria, se não fosse o amor”. O amor é apresentado como força ontológica, como aquilo que impede o vazio, que redime a existência. Ele não é meramente um sentimento romântico, mas uma decisão, uma ação, uma espiritualidade. É capaz de “perdoar o imperdoável”, “resgatar a dignidade do ser”. Ao dizer que “O amor é o segredo de tudo / E eu pinto tudo em amarelo”, Emicida resgata a cor que dá nome ao álbum: AmarElo, mistura de amar e elo, cor da luz, da energia e também da ancestralidade espiritual africana. O amarelo passa a ser símbolo da utopia que se quer construir, uma utopia do amor radical, da reparação histórica, da reconciliação entre os seres.
Por fim, os versos “Vejo a vida passar num instante / Será tempo o bastante que tenho pra viver?” trazem uma angústia existencial: o tempo é breve, a vida é incerta. No entanto, a resposta é dada pelo próprio amor: “Enquanto houver amor, eu mudarei o curso da vida”. A poética de Emicida não recua diante da finitude; ela a enfrenta com propósito. O altar de comunhão que o eu lírico deseja erguer é, ao mesmo tempo, um gesto político, espiritual e artístico. A canção termina como começou: com uma meditação sobre a origem, mas agora com um princípio claro: o amor é o que nos faz humanos. Com isso, Emicida reconstrói o elo perdido entre os seres.