por Márcio Adriano Moraes
No ano 2000, o médico e escritor porto-alegrense Moacyr Scliar publica o seu célebre romance juvenil O mistério da Casa Verde, articulando mistério ficcional, crítica social e intertextualidade literária. A obra realiza um diálogo direto com O alienista, de Machado de Assis, lançado em 1882, transformando o universo satírico machadiano em matéria viva para uma aventura de adolescentes. Além de renovar a leitura de um clássico, o autor trata de temas contemporâneos como saúde mental, exclusão, juventude e responsabilidade cidadã.
O enredo é centrado em quatro adolescentes: Arturzinho (o “Xereta”), Pedro Bola, André Catavento e Leo; todos moradores da cidade fictícia de Itaguaí, a mesma vila que serve de cenário à narrativa machadiana. O ponto de partida da história é a decisão do grupo de transformar a enigmática e abandonada Casa Verde em um clube. Essa casa, no entanto, guarda memórias do passado e um segredo vivo: um homem estranho que se diz descendente de Simão Bacamarte, o alienista, ocupa clandestinamente o prédio há meses. O suspense cresce à medida que os adolescentes vão desvendando o mistério, que envolve história familiar, doença mental, marginalização e os limites entre razão e loucura.
A estrutura do romance é organizada em dez capítulos, cada um com título explicativo que remete a um tom aventuresco (Capítulo 8: “No qual as coisas se precipitam e tomam rumo imprevisto”, por exemplo). Moacyr Scliar utiliza uma linguagem acessível, voltada para o público jovem, construindo uma narrativa que se equilibra entre leveza e reflexão, adotando um estilo fluente, com toques de humor, ironia e empatia.
Um dos grandes méritos da obra está na forma como atualiza a crítica social presente em O alienista. Na sátira de Machado de Assis, o médico Simão Bacamarte decide internar todos os cidadãos de Itaguaí que não se enquadram no seu rígido critério de normalidade, revelando a arbitrariedade do poder científico e o absurdo das classificações sociais. Scliar resgata essa crítica, mas a transita para um novo cenário: a Itaguaí do final do século XX, com seus jovens irreverentes, suas autoridades midiáticas e um psiquiatra (Dr. Eduardo) que representa uma nova abordagem para a loucura, mais empática e ética.
A intertextualidade com Machado de Assis ocorre, em primeiro lugar, com a própria Casa Verde, símbolo do controle da loucura pelo saber médico, que reaparece como lugar de abandono, mistério e memória. Em segundo, o personagem Jorge, pai de Lúcia, revive em sua fantasia o papel do alienista, vestindo-se como Bacamarte e reproduzindo seus gestos beirando o delírio. Mas, ao contrário da figura autoritária de Bacamarte, Jorge é um homem fragilizado, que procura abrigo no delírio para lidar com seu sofrimento psíquico. A herança simbólica da loucura, porém, é transformada: da crítica à arrogância científica passa-se à denúncia do abandono e da invisibilização dos doentes mentais.
Além disso, Scliar insere a própria leitura de O alienista na trama, já que os personagens (os garotos) encontram o livro, leem-no, discutem seus significados e o comparam com a realidade que estão vivenciando. Essa “metaleitura” – a leitura dentro da leitura – produz um efeito didático e reflexivo, apresentando aos leitores jovens não apenas uma história instigante, mas também uma iniciação à literatura crítica brasileira. A figura da professora Isaura, apaixonada por Machado, é fundamental nesse propósito.
Outro aspecto interessante é a maneira como o romance insere temas contemporâneos: a solidão, os transtornos mentais, a responsabilidade social, a ação comunitária dos jovens, o sensacionalismo da mídia e a necessidade de escuta e acolhimento. Jorge é um homem doente, mas que não oferece risco à sociedade; no entanto, sua condição é transformada em espetáculo por um radialista sensacionalista, Ildefonso, cuja ânsia por audiência simboliza o desrespeito à dor alheia. É o gesto de solidariedade de Arturzinho e seus amigos, aliado à escuta respeitosa do Dr. Eduardo, que rompe essa lógica perversa e permite o início de um tratamento digno para Jorge.
Nesse ponto, há também uma transformação do conceito de loucura: o que antes era visto como desvio absoluto, agora é compreendido como sofrimento, como parte da complexidade humana. A psiquiatria contemporânea, representada pelo Dr. Eduardo, reconhece a importância da história de vida, do nome, da escuta, do vínculo e do cuidado. Jorge não é curado por um choque de autoridade, mas começa a melhorar quando é respeitado como pessoa. A leitura e a arte ganham aí um papel terapêutico e transformador, uma vez que o monólogo encenado por ele ao final do romance é uma síntese catártica, em que o delírio é ressignificado como arte e como história.
Dessa forma, a juventude, nesse contexto, aparece como força regeneradora. O projeto inicial dos garotos – ter um clube onde pudessem ouvir música e dançar – acaba se transformando em um centro cultural que resgata a memória da cidade, acolhe diferentes expressões e trata com responsabilidade temas sensíveis. O grupo, antes interessado apenas em diversão, amadurece, assume compromissos éticos, atuando como ponte entre gerações. Ao final, não só a Casa Verde é restaurada, em parte como museu, em parte como espaço de convivência, mas também Jorge, que encontra um novo sentido para sua existência. Há, nesse desfecho, uma aposta de Moacyr Scliar na potência da juventude como agente de mudança social.
Enfim, O mistério da Casa Verde é uma obra que conjuga ficção juvenil, crítica social e intertextualidade. A releitura inventiva de O alienista funciona como ponte entre o leitor contemporâneo e um clássico da literatura brasileira, ao mesmo tempo em que mobiliza valores de empatia, justiça e engajamento. Scliar, médico e escritor, sabe que a literatura pode curar e oferece aos seus leitores uma história em que os livros, a amizade e a arte são capazes de transformar o medo em acolhimento, o delírio em beleza, a exclusão em pertencimento.