por Márcio Adriano Moraes
Publicado em 2020, O avesso da pele, do porto-alegrense Jeferson Tenório, é uma prosa intimista, na qual o racismo estrutural e as violências cotidianas permeiam memórias, afetos e lutas silenciosas. Através de um narrador em primeira pessoa, tempos e espaços são entrelaçados, mostrando a formação de seus principais personagens numa proposta que transcende o testemunho social, oferecendo uma experiência estética e reflexiva.
A narrativa é conduzida por Pedro, um jovem negro de classe média baixa que, ao longo do romance, busca reconstruir a memória do pai, Henrique, assassinado por policiais. Essa primeira pessoa, por vezes hesitante e fragmentada, cria um tom confessional, aproximando o leitor de suas dores e descobertas. O narrador expõe sua própria subjetividade, revisitando as ausências paternas e as marcas de um racismo que molda vidas inteiras. Esse uso do narrador em primeira pessoa reforça a dimensão subjetiva e íntima da história, permitindo que Pedro atue como testemunha e analista de sua própria vida e da de seus pais: Martha e Henrique; principalmente da do pai a quem a narrativa é direcionada.
O tempo narrativo não é linear. Há uma constante alternância entre o presente — a tentativa de Pedro de elaborar o luto e as memórias do pai — e o passado, reconstruído por meio de lembranças e investigações (nesse ponto, o narrador-personagem assume uma onisciência típica de 3ª pessoa). Essa fragmentação temporal confere ao romance uma dimensão caleidoscópica, na qual o pretérito e o presente se alimentam mutuamente, criando uma tessitura de vozes, de dor e de esperança. Essa estrutura cíclica reflete a própria ideia de memória e de identidade: não são linhas retas, mas redes emaranhadas de experiências e afetos.
O espaço, por sua vez, está centrado em Porto Alegre, cidade que se revela tanto cenário quanto personagem. As ruas, as praças e os bares da capital gaúcha aparecem como espaços de violência e de exclusão, especialmente para corpos negros. Mas também surgem como lugares de afeto, de resistência e de tentativa de pertencimento. Essa geografia marcada pelo racismo urbano e pela desigualdade social cria uma ambiência opressora, mas também delineia as estratégias de sobrevivência e de autoafirmação dos personagens.
Apesar de Pedro possuir certo protagonismo, percebe-se que a escrita (metalinguagem) só existe por causa do pai assassinado. Assim, é plausível colocar Henrique (o pai) como o centro da narrativa. A trajetória de Pedro é marcada pelo desejo de compreender quem foi seu pai e de lidar com a herança da violência e do racismo. Ao mesmo tempo, Pedro se vê às voltas com suas próprias dores: a solidão, as microagressões raciais, o amor com mulheres brancas e a busca por referências negras para construir sua identidade. Sua voz narrativa é atravessada por dúvidas e contradições, o que confere ao texto uma considerável densidade psicológica.
Henrique, o pai de Pedro, morto de forma brutal por uma ação policial, professor de literatura, homem negro, acreditava no poder dos livros e sonhava com uma vida melhor para si e para o filho. No entanto, era também um homem atravessado por medos e frustrações, que se sentia sempre deslocado, mesmo dentro de sua cidade e de sua própria casa. Antes de se casar com Martha, teve relacionamentos com mulheres brancas, o que para ele sempre foi um território de desejo, mas também de frustração: enquanto era encantado pela brancura dessas mulheres, também percebia como suas relações com elas reproduziam dinâmicas de poder e fetichização. Após romper o matrimônio com Martha, ele se apaixonou por Elisa, uma colega de trabalho que, diferente de Martha, parecia entender sua alma de homem negro e seu desejo por liberdade. Essa paixão arrebatadora e clandestina com Elisa foi marcada por momentos de cumplicidade e de fuga do peso das responsabilidades familiares e raciais que sempre carregou. Embora a relação com Elisa não tenha se consolidado plenamente, ela representa o último suspiro de uma liberdade afetiva que Henrique parecia sempre buscar e que, de certo modo, escapa a todos que vivem em uma sociedade que restringe e controla o amor negro. Sua morte violenta denúncia o genocídio da população negra, mas sua vida – recontada por Pedro – revela também um homem de afetos, de amor e de dignidade.
Já Martha, a mãe de Pedro, também negra, tornou-se órfã aos dez anos. Em Santa Catarina, onde viveu parte da adolescência, adotada de forma informal por Madalena, descobriu a dor precoce de ser objetificada por homens. Depois de uma experiência “estável” frustrada com Vitor (homem branco), casa-se com Henrique e assume um comportamento ciumento e controlador, alternando entre afeto e explosões de desespero. Sua trajetória, marcada por perdas, humilhações e resiliência, reflete as lutas das mulheres negras que, mesmo fragilizadas, insistem em sobreviver e proteger aqueles que amam. Essa força e essa dor moldam a relação dela com Pedro, deixando rastros de cuidado e silêncio, pois a mãe de Pedro parece sempre temer a repetição do abandono e da violência que sofreu na infância
O elenco de personagens do romance é considerável, destaquemos, pois, ainda, a tia Luara, mulher negra de pele retinta, que representa as mulheres negras que carregam marcas ainda mais visíveis do racismo; e o professor Oliveira, mentor intelectual de Henrique e referência de consciência negra e resistência.
Quanto às temáticas abordadas por Jeferson Tenório em seu romance, um dos eixos fundamentais é o racismo estrutural. Tenório expõe como o preconceito se manifesta de forma velada e explícita: desde as piadas racistas contadas na casa da família branca da namorada de Henrique, Juliana; até a violência policial que extermina vidas negras. Outro tema é a construção da identidade negra. Henrique busca referências para se afirmar num mundo que o marginaliza. Essa busca passa pelo aprendizado com o professor Oliveira e pela leitura de autores como Malcolm X e Martin Luther King. Mas também enfrenta as armadilhas do racismo internalizado e das relações inter-raciais marcadas por fetichização e exotização. Nesse sentido, a masculinidade negra surge como tema, mostrando as pressões para que o homem negro seja sempre forte e viril, mesmo quando é frágil. Há também uma reflexão sobre as violências específicas que recaem sobre as mulheres negras, como as experiências da mãe de Pedro e de tia Luara, abordando as interseccionalidades entre racismo e machismo. A violência policial impacta, não só pela vigilância preconceituosa, mas pela ação. A morte de Henrique não é apenas um assassinato, mas a culminância de um sistema que faz do corpo negro um alvo. A cada lembrança de seu pai, Pedro reitera essa denúncia e busca ressignificar a figura paterna, para além do estigma da violência.
A memória, o luto e a tentativa de reconstrução da figura paterna são o cerne emocional do romance. Pedro usa as lembranças, os objetos e as conversas como instrumentos para recompor um pai que, na memória oficial, foi apenas mais uma vítima. Essa elaboração do luto é, ao mesmo tempo, um gesto de amor e de resistência.
Estilisticamente, a prosa de Tenório combina lirismo e crueza. As frases, muitas vezes curtas e impactantes, soam como fragmentos de um pensamento que ainda está sendo elaborado. O narrador alterna entre um tom confessional e uma reflexão crítica, criando uma atmosfera de intimidade. Esse estilo fragmentado e poético reflete a própria condição de Pedro: alguém que tenta se reconstruir a partir dos cacos de sua história familiar e racial. Há, dessa forma, uma forte dimensão ensaística na narrativa, especialmente nas passagens em que Pedro reflete sobre a psicanálise, sobre a história da construção do conceito de raça ou sobre a violência estrutural. Essas digressões teóricas não são artificiais, pois estão sempre ancoradas na experiência concreta do narrador, bem como na do autor, Jeferson Tenório, homem preto de Porto Alegre.
O Avesso da Pele é, portanto, um romance de formação e um testemunho de denúncia social. Mas vai além: ao usar a memória e o afeto como ferramentas de reconstrução, Tenório mostra que, mesmo diante da violência e da exclusão, é possível inventar novas formas de existir. A figura de Henrique, embora tragicamente silenciada, ressurge na escrita de Pedro como símbolo de resistência e de amor. E Pedro, ao narrar essa história, reinscreve sua própria existência no mundo, um mundo que insiste em apagá-lo, mas que ele recusa abandonar.