por Márcio Adriano Moraes
Romance publicado integralmente em 1915, Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, narra a trajetória de Policarpo Quaresma, um funcionário público que, tomado por um idealismo exacerbado, tenta “corrigir” os rumos do Brasil, sempre imerso em sua ingenuidade e patriotismo. Narrado em terceira pessoa, por um narrador onisciente, o livro é dividido em três partes que refletem as fases de vida de Quaresma e suas tentativas frustradas de intervenção no país.
Na primeira parte, o protagonista, imerso na cultura brasileira, dedica-se ao folclore e às modinhas, aprendendo violão com Ricardo Coração dos Outros. Além disso, acredita que a língua nacional deveria ser o tupi-guarani e apresenta um projeto de reforma ortográfica e linguística ao governo. Sua proposta, no entanto, é ridicularizada pela imprensa e pela sociedade, expondo o nacionalismo quase quixotesco de Quaresma e a resistência ao diferente. Seu posicionamento se torna motivo de chacota e ele é, então, internado em um hospício.
Na segunda parte, o protagonista deixa o sanatório, abandonando a vida burocrática, após conseguir uma aposentadoria, e se refugia em seu sítio, o qual recebe o nome de “Sossego”, passando a se dedicar à agricultura. Quaresma sonha em provar que o Brasil tem solo fértil e potencial agrícola autossuficiente, mas enfrenta as barreiras burocráticas e fiscais que impedem a prosperidade de pequenos produtores; além de lidar com as saúvas (formigas).
Por fim, na terceira parte, Quaresma engaja-se na Revolta da Armada (1893), acreditando que poderia colaborar para uma regeneração nacional. Após lutar em prol do presidente Floriano Peixoto, sua decepção, contudo, atinge o clímax quando é preso e condenado à morte, injustamente, acusado de traição. O “triste fim” do título revela a derrocada de seu idealismo frente à hipocrisia e violência das estruturas de poder.
O protagonista, Policarpo Quaresma, dessa forma, é um personagem construído como o símbolo do ufanista ingênuo. Sua erudição e sua devoção à pátria transformam-se em farsa diante de uma sociedade que prefere zombar do que acolher ideias progressistas. Quaresma é um homem metódico, com horários e rotinas inquebrantáveis, refletindo a disciplina e a paixão pela ordem que contrastam com a desorganização social ao seu redor. É justamente por isso que seu destino trágico é tão impactante: ele, que só desejava ver o Brasil melhor, é destruído por sua própria incapacidade de perceber as contradições e resistências do meio.
Além da irmã solteira dependente do irmão, Adelaide; outros personagens, como Olga, a afilhada; e Ricardo Coração dos Outros, um cantor de modinhas, completam o panorama humano que cerca Quaresma. Olga representa um laço de afetividade e cuidado com o padrinho, sendo a única que reconhece e respeita a pureza de suas intenções. Já Ricardo simboliza a cultura popular, com sua música e lirismo singelo. A presença desses personagens cria uma rede de relações que suaviza, em momentos, o isolamento de Quaresma, mas não consegue salvá-lo do embate entre seu sonho e a realidade.
Um elemento central na obra é a crítica social e política. Lima Barreto denuncia, de forma ácida e sarcástica, a hipocrisia das instituições e a corrupção endêmica. A zombaria sofrida por Quaresma por parte da imprensa e dos colegas de repartição revela uma sociedade cínica, que não acolhe ideais transformadores. Quando Quaresma se volta para a agricultura, o autor expõe as dificuldades de quem tenta viver honestamente, retratando o peso dos impostos, a falta de apoio ao pequeno produtor e o descaso com o trabalhador rural. Finalmente, ao engajar-se na Revolta da Armada, Policarpo descobre que a política, longe de ser campo de transformação, é palco de violência e traição. Essa desilusão culmina na prisão e morte de Quaresma, sem julgamento justo, símbolo máximo do fracasso de um homem honesto em um país que não valoriza a honestidade.
O estilo de Lima Barreto é marcado por uma linguagem acessível, de frases diretas e poucas ornamentações, seguindo a tendência pré-modernista de aproximar a literatura da linguagem coloquial. Seu humor irônico emerge em muitas passagens, principalmente ao ridicularizar a pretensão dos militares, a ignorância das autoridades e o servilismo social. Apesar de adotar um narrador em terceira pessoa, Lima Barreto faz do narrador um cúmplice das angústias de Quaresma, muitas vezes deixando transparecer a crítica às instituições. A construção das cenas, por sua vez, combina uma minuciosa descrição do cotidiano, como as tardes metódicas do major e a vida no sítio, com momentos de reflexão filosófica e introspectiva do protagonista, criando um tom melancólico que permeia todo o livro. Outro ponto relevante é o simbolismo do próprio título o qual antecipa o desfecho trágico do personagem, mas ao mesmo tempo funciona como denúncia: o “triste fim” de Quaresma representa o triste fim de qualquer esperança de regeneração nacional que não enfrente as estruturas de poder de frente. O sítio “Sossego”, em vez de ser o paraíso rural sonhado, torna-se um palco de decepções e de provas incontornáveis da ineficiência e da ganância das autoridades. Já o violão de Ricardo Coração dos Outros, em suas canções, contrasta com a dureza do mundo real, lembrando que a cultura popular ainda guarda alguma pureza e poesia em meio à brutalidade.
Historicamente, o livro dialoga com o contexto de transição do Brasil imperial para a república, período em que se consolidavam as estruturas autoritárias e excludentes que Lima Barreto tanto critica. O autor, de origem humilde e mestiço, não tinha ilusões sobre a “modernização” republicana que, para ele, continuava sendo um sistema de privilégios e de injustiças. Por isso, a obra reflete não apenas a trajetória de um indivíduo, mas também a luta inglória de toda uma classe de brasileiros pobres (suburbanos) e idealistas que se veem esmagados pelo poder. Nesse sentido, o romance antecipa preocupações que só seriam retomadas de forma intensa pelos modernistas.
A crítica ao ufanismo nacionalista é outro tema central. Quaresma, ao tentar resgatar a língua tupi como idioma oficial, mostra uma devoção patriótica cega e, paradoxalmente, anacrônica. Lima Barreto desmonta esse ufanismo, mostrando que o nacionalismo, sem consciência das reais mazelas sociais, é apenas retórica vazia. A agricultura, na segunda parte, igualmente simboliza esse desejo de autossuficiência, mas acaba por evidenciar o abismo entre ideal e prática. Finalmente, o engajamento político de Quaresma expõe como as elites utilizam as bandeiras de mudança apenas para manter o status quo.
Assim, Triste Fim de Policarpo Quaresma não é apenas a história de um homem ingênuo; é um alerta de Lima Barreto contra o nacionalismo ufanista e as ilusões românticas que não reconhecem a complexidade do Brasil. Pessoas como Quaresma, que não conseguem ver além de seus sonhos patrióticos, acabam esmagadas por uma realidade social corrupta e injusta. O autor nos lembra que o Brasil tem qualidades e defeitos; nossa cultura, nossa agricultura, nossa política são cheias de potencial, mas também de desigualdades e contradições. É preciso amá-lo, sim, mas sem idealizar; é preciso, sobretudo, entendê-lo criticamente. Ao denunciar o destino trágico de Policarpo Quaresma, Lima Barreto nos desafia a olhar para o país com coragem, sem mitificações, e a lutar por uma transformação real e consciente.