por Márcio Adriano Moraes
Publicada em 1882 dentro da coletânea Papéis Avulsos, a novela O Alienista, de Machado de Assis reúne os elementos que caracterizam a maturidade literária do autor: ironia, crítica social, desvelamento das vaidades humanas e uma sofisticada ambiguidade narrativa. Ambientada na fictícia Itaguaí, a história gira em torno do médico Simão Bacamarte e sua obsessão científica, levantando questões sobre o poder, a sanidade e as instituições.
Logo de início, mediante um narrador em terceira pessoa, a obra apresenta Bacamarte como um médico de renome, respeitado por sua erudição e por seu suposto compromisso com o saber. O retorno ao Brasil e a instalação em Itaguaí simbolizam um deslocamento entre centros de poder (Portugal) e a periferia colonial, algo que Machado utiliza para ironizar o provincianismo e a soberba de figuras que, mesmo longe das grandes metrópoles, ambicionam dominar o “mundo” através da ciência. O narrador cria, assim, um contraponto entre a ambição desmedida e a pequenez do meio.
O enredo acompanha a fundação da Casa Verde, um hospício criado por Bacamarte para tratar de doentes mentais, mas que rapidamente se torna o palco de uma verdadeira inversão de valores. Inicialmente, Bacamarte interna os “verdadeiros” loucos, mas, tomado por sua ânsia classificatória e por um método pseudocientífico, passa a incluir qualquer comportamento que fuja ao seu padrão de equilíbrio. Aos poucos, toda a cidade de Itaguaí se vê à mercê dos diagnósticos arbitrários do alienista, e a Casa Verde se torna uma prisão para todos os que destoam de um ideal de normalidade inventado por ele.
A obra desmonta, com humor e ironia, o discurso de autoridade científica. A vaidade de Bacamarte é o motor de sua prática: ao mesmo tempo que alega buscar o bem da humanidade, o médico está interessado em consolidar o próprio prestígio. Essa ironia se manifesta desde as justificativas fisiológicas que ele apresenta para seu casamento com D. Evarista, ela seria apenas uma boa reprodutora de filhos fortes, até o método quase inquisitorial de classificar toda a cidade como louca. A lógica de Bacamarte não é a da ciência imparcial, mas a da ambição pessoal, travestida de zelo acadêmico.
Ao longo da narrativa, a “loucura” se revela um conceito profundamente relativo. Machado de Assis questiona, em tom cômico e filosófico, a própria definição de sanidade. A cada capítulo, Bacamarte expande suas teorias, ao ponto de, no final, reverter completamente sua doutrina: ele passa a considerar que, se todos são loucos, a verdadeira patologia estaria naqueles raros indivíduos que demonstram equilíbrio absoluto. É quando Bacamarte, num gesto final de coerência absurda, decide se recolher na Casa Verde, pois só ele seria “louco” o bastante para querer tanto equilíbrio.
Essa inversão revela o toque machadiano de ironia: a linha que separa razão e loucura é, para Machado, frágil e subjetiva. A obra toda se move em torno dessa fronteira imprecisa, sugerindo que o poder de definir a loucura, ou a verdade, está muito mais ligado a quem detém o poder social e simbólico do que a qualquer critério objetivo.
Além de questionar a ciência e suas pretensões de verdade, O Alienista retrata com humor o comportamento humano diante da autoridade. Itaguaí, ao longo da narrativa, alterna entre a bajulação e o medo em relação a Bacamarte. Os vereadores, por exemplo, ora o apoiam, ora se rebelam, sempre preocupados mais com a própria posição do que com a justiça ou a sanidade real dos internados. O narrador destaca, assim, a hipocrisia de uma sociedade que, para manter o status quo, está disposta a adular ou derrubar o “sábio” conforme as conveniências.
A rebelião dos Canjicas, liderada pelo barbeiro Porfírio, é um dos momentos em que a sátira machadiana atinge o auge. Motivada pelo medo de serem internados e pela percepção de abuso do poder, a revolta revela, no entanto, a mesma farsa de que Bacamarte é acusado. Porfírio, ao assumir o poder, repete os mesmos gestos autoritários, e sua liderança termina em um jogo de vaidades tão vão quanto o do alienista. No final, o próprio barbeiro acaba recolhido à Casa Verde, ironizando a alternância entre poder e loucura.
A figura de D. Evarista também merece atenção. Ela representa a domesticidade e as convenções femininas, mas sua internação final por “mania sumptuária” (um apego excessivo a roupas e joias) escancara o sexismo e a arbitrariedade do discurso médico-patriarcal de Bacamarte. A mulher que era vista como submissa e ornamental torna-se alvo do poder do marido, sem qualquer possibilidade de questionamento.
A linguagem de Machado de Assis em O Alienista é outro ponto de destaque. Sua prosa combina elegância e humor, criando uma distância crítica entre narrador e história. O narrador, de tom aparentemente neutro, é um observador que registra os absurdos de Itaguaí com um sorriso contido. Essa ironia sutil é essencial para a força da sátira, pois permite ao leitor perceber a hipocrisia social sem um discurso moralista explícito.
A estrutura da novela — dividida em capítulos, como um folhetim — reforça o clima de crônica de costumes, mas vai além: constrói uma fábula filosófica sobre o poder, a ciência e a natureza humana. Em treze capítulos titulados, Machado consegue criar um microcosmo que reflete as contradições do Brasil imperial do século XIX, mas também toca em questões universais.
No desfecho, Bacamarte se interna na Casa Verde para provar sua teoria final: ele seria o único são em um mundo de loucos. Essa última cena funciona como um fecho perfeito da ironia machadiana, expondo a vaidade científica e a perigosa confusão entre conhecimento e autoritarismo. O gesto de Bacamarte de se declarar louco, e ao mesmo tempo exemplo da perfeição mental, demonstra como, mesmo no auge da racionalidade, pode haver um delírio profundo. É um retrato da vaidade humana e de suas máscaras.
O Alienista é, portanto, uma crítica à pretensão de verdade absoluta, ao autoritarismo disfarçado de saber científico e às instituições que regulam a vida em sociedade. Machado de Assis mostra, com humor e inteligência, como as fronteiras entre razão e loucura são moldadas pelas relações de poder e pelas vaidades de cada época. Assim, como um suspiro final do texto, fica a lembrança de que, no espelho do poder, o reflexo mais perigoso é sempre o que nos seduz com a promessa de ordem e sanidade, pois quem define a loucura, por vezes, também a encarna.