por Márcio Adriano Moraes
Distante da exaltação nacionalista dos romances indianistas e do regionalismo da literatura sertaneja; em Senhora, publicado em 1875, José de Alencar mergulha nos dilemas do amor e do casamento sob a ótica das relações sociais, econômicas e de gênero do século XIX. Neste romance urbano, a história de Aurélia Camargo e Fernando Seixas traz um embate entre sentimentos e convenções sociais, numa moldura romântica que já aponta para problematizações realistas.
Dividido em quatro partes: “O Preço”, “Quitação”, “Posse” e “Resgate”; Senhora apresenta uma estrutura simbólica que remete a uma lógica mercantil. Essa divisão não é apenas um recurso narrativo, mas uma crítica à sociedade burguesa ascendente do Segundo Reinado, em que o casamento se transforma em uma transação financeira. Aurélia, enriquecida subitamente com a herança do avô, decide comprar o noivo que antes a rejeitara por não ter dote. Paga cem contos de réis a Seixas para que ele se case com ela, invertendo os papéis tradicionais: é a mulher quem adquire o marido. Essa inversão dramatiza a mercantilização dos sentimentos e a subversão da ordem patriarcal sem, contudo, romper com ela. Aurélia exerce poder, mas é um poder que nasce do capital. O amor torna-se produto, e o casamento, contrato. Alencar, dessa forma, coloca tête-à-tête
sentimento e interesse, liberdade e convenção, paixão e cálculo, num jogo que envolve sedução, humilhação e vingança.
A construção de Aurélia (perfil de mulher) transita entre a idealização romântica da mulher bela, sensível, virtuosa e a figura da mulher ativa, estratégica, dominadora. A aparência de autonomia e insubmissão não põe em xeque as estruturas de gênero da sociedade, mas simula uma inversão de papéis na esfera externa da personagem. Aurélia, ao usar seu dinheiro para se vingar e reconquistar Seixas, parece subverter a lógica da submissão feminina. Contudo, no fundo, deseja ser amada e aceita por ele. Seu objetivo final é a redenção pelo amor, o mesmo destino reservado às heroínas românticas tradicionais. Sua “emancipação” está condicionada à reafirmação do poder do sentimento amoroso, ainda que passe pela teatralidade da humilhação masculina. A nossa protagonista também se mostra altamente reflexiva e autoconsciente, o que contribui para sua construção como figura esférica. Ela sofre, ama, se arrepende, se contradiz. Sua humanidade está na oscilação entre a rigidez e a fragilidade, entre a altivez e a carência. O conflito entre a mulher que domina e a mulher que deseja ser dominada é a essência de sua tragédia íntima.
Já o seu par amoroso, Seixas, é um típico representante da classe média em ascensão. Funcionário público medíocre, aspira entrar nos círculos da elite por meio do casamento com uma mulher rica. Não se trata de um vilão no sentido clássico; é apenas um homem comum, movido por ambições legítimas, segundo os valores da sociedade em que vive. Sua decisão de abandonar Aurélia por uma moça rica (Adelaide Amaral) revela sua adesão à lógica mercantil do matrimônio. No entanto, ao aceitar casar-se com Aurélia por dinheiro, sem saber sua verdadeira identidade, vê-se preso a uma rede de humilhação e reconquista que o transforma. Ao longo do romance, Seixas passa por uma jornada de autoconhecimento e transformação. Seu “resgate” final, título da última parte do romance, ocorre quando ele recusa o dote, demonstrando finalmente que ama Aurélia pelo que ela é e não pelo que possui. Trata-se de uma conversão moral que restaura a ordem sentimental e confere ao romance seu desfecho conciliador. Essa trajetória de queda e redenção aproxima Senhora do romance de formação, com um protagonista masculino que aprende com a dor e renuncia ao materialismo. A crítica de José de Alencar, dessa forma, não é apenas dirigida à hipocrisia da sociedade, mas também àqueles que se deixam corromper por ela.
Através de um narrador em terceira pessoa que recorre a constantes flashbacks em seu enredo, Senhora revela um Brasil carioca, urbano, burguês e seus costumes. Aurélia e Seixas não são tipos isolados, mas produtos e agentes de uma sociedade onde o dinheiro substitui o sangue como critério de distinção. A discussão sobre dote, casamento e reputação feminina põe em evidência os limites sociais e a permanência de uma moral patriarcal que se adapta, mas não desaparece. Aurélia pode comprar Seixas, mas não pode se libertar da necessidade de ser desejada por ele. A aparência de emancipação feminina esbarra na estrutura patriarcal da sociedade imperial.
Apesar de sua crítica velada à sociedade, Senhora mantém traços clássicos do Romantismo. A exaltação da beleza feminina, a idealização do amor verdadeiro, o sofrimento dos amantes, os conflitos morais, tudo está presente na obra. Porém, a diferenciação está no modo como Alencar faz operar esses elementos. O espaço urbano do Rio de Janeiro, as descrições realistas dos salões, das roupas e das interações sociais conferem à obra um verniz verossímil. Ainda que a linguagem conserve o lirismo típico do período, a trama evidencia uma preocupação com a verossimilhança, com o retrato de uma sociedade real, com seus vícios e valores. A crítica ao casamento por interesse é feita não por negação do casamento, mas por sua idealização romântica. Ao final, Aurélia e Seixas se unem não por dinheiro, mas por amor, conciliando o valor romântico do sentimento com a crítica ao materialismo social.
Logo, Senhora pode ser lida como uma obra de fronteira, entre o Romantismo e o Realismo, entre a submissão e a rebeldia feminina, entre a crítica e a conservação de valores. Aurélia não é Emma Bovary, mas tampouco é apenas a dama ideal. Seixas não é o herói corajoso, mas tampouco é vilão. Ambos são personagens de um tempo em transformação.
A leitura crítica de Senhora, portanto, nos permite observar como a literatura pode ser um espelho da sociedade. O romance encena uma crítica ao mercado matrimonial burguês sem romper com o ideal do amor romântico. Porém, denuncia a instrumentalização do casamento, preserva o final feliz, a redenção amorosa, a ordem restabelecida. Assim, José de Alencar nos oferece, com Senhora, uma reflexão sobre a mulher, o dinheiro, o amor e a sociedade brasileira do século XIX.