por Márcio Adriano Moraes
Nebulosas, publicada em 1872, quando a autora contava com 20 anos de idade, é considerada uma das primeiras obras de poesia escrita por uma mulher no Brasil. Seu lançamento representou uma ruptura naquele sistema literário dominado por homens, em um Brasil ainda imperial, escravocrata e patriarcal. A carioca Narcisa Amália de Campos (1852-1924) rompe, assim, o silêncio a que as mulheres estavam historicamente relegadas e usa sua poesia como instrumento de denúncia, reflexão e subversão.
Inserida no Romantismo brasileiro, Nebulosas possui poemas que dialogam com a primeira geração, ao trazer a natureza brasílica; com a segunda geração em seus versos ultrarromânticos; e também com a terceira fase a partir de temas sociais principalmente ligadas à escravidão. Narcisa Amália, dessa maneira, apropriou-se dos moldes românticos para construir um espaço de enunciação próprio, ora intimista, ora político.
O título da obra já antecipa uma de suas principais características estilísticas e temáticas: a névoa, o vago, a névoa sentimental que recobre os poemas. A “nebulosidade” é uma metáfora da condição existencial da poeta, bem como da condição feminina. O sentimento de dor, solidão, desilusão amorosa e angústia diante da vida aparece reiteradamente nos poemas. Essa expressão emocional intensa é característica romântica, mas em Narcisa Amália ela adquire um traço diferencial: há sempre uma tensão entre o desejo de entrega à dor e o ímpeto de superá-la pela razão e pela escrita. Um aspecto notável é a maneira como a autora subverte o modelo de musa passiva. Ela não se limita a ser objeto da poesia, mas torna-se sujeito, forjando sua voz na tradição lírica. Nesse sentido, há uma inversão de papéis: a mulher não é apenas a inspiradora, mas também a criadora.
Embora a palavra “feminismo” não apareça literalmente em sua obra, ela está presente em sua essência. Nebulosas é um livro que aponta as dores e as impossibilidades impostas às mulheres. A condição feminina aparece como uma prisão, da qual a escritora busca se libertar através da literatura e do pensamento. A própria trajetória pessoal de Narcisa Amália reforça essa leitura. Seu segundo casamento, inicialmente harmonioso, desfez-se quando o marido passou a se ressentir de sua intensa vida intelectual e literária, revelando como os laços afetivos, no contexto patriarcal, funcionavam como instrumentos de cerceamento da liberdade feminina. A dissolução do casamento pode ser lida, portanto, como uma recusa da poeta em submeter-se à opressão conjugal.
Além disso, a autora manteve uma atuação pública importante como jornalista e professora, lutando por maior dignidade para as mulheres, o que transborda também para sua poesia. Em seus versos, a voz feminina não apenas sofre; ela acusa, denuncia, confronta.
Em termos formais, os poemas de Nebulosas exploram temas e imagens tradicionais do Romantismo: o amor idealizado e a desilusão amorosa; a natureza como reflexo da alma: as flores, as estrelas, os rios, o mar e os ventos são elementos com significados metafóricos intensos; a tristeza existencial; a fuga para a morte, evocada não apenas como destino final, mas como metáfora da perda, da dor e da impossibilidade de realização plena no mundo. A liberdade, por sua vez, surge como um desejo constante, seja ela individual, feminina ou social.
Essas imagens não estão apenas a serviço da beleza, mas da expressão subjetiva de conflitos interiores e de uma crítica velada ao mundo exterior. A linguagem de Narcisa Amália é refinada, muitas vezes marcada por um vocabulário culto e elaborado. Ela domina as formas métricas com segurança, mas também as desafia, quando necessário. Há, portanto, uma tensão entre forma e conteúdo, tradição e ruptura, que confere à obra uma riqueza estética singular. É possível identificar em sua poesia, ainda que timidamente, uma antecipação de traços que seriam mais bem desenvolvidos posteriormente, como o uso de versos brancos, ou seja, sem rima, em alguns poemas, como no próprio “Nebulosas” que intitula a obra.
A dimensão do tempo também é central. O passado é frequentemente evocado com saudade e amargura; o presente, com angústia; o futuro, com incerteza. Essa tripartição existencial do tempo reforça a atmosfera “nebulosa” que permeia a obra e justifica seu título. A autora comumente elabora imagens de aprisionamento e clausura, simbolizando o confinamento das mulheres em espaços físicos e simbólicos. Porém, esse aprisionamento é, em muitos momentos, posto diante de uma voz que anseia por movimento, por desobediência, por ação.
Ademais, Nebulosas não pode ser lida apenas como um conjunto de poemas românticos. Trata-se de um ato de resistência, uma afirmação do direito de a mulher existir como sujeito pensante e sensível em um mundo que lhe nega esse lugar. Narcisa Amália inaugura, ao lado de outras escritoras como Maria Firmina dos Reis, uma linhagem de vozes femininas que ousaram se colocar publicamente como intelectuais e artistas no Brasil do século XIX.
A obra também adquire relevância contemporânea por permitir a releitura crítica dos papéis de gênero, das desigualdades históricas e do apagamento sistemático de escritoras mulheres na história da literatura brasileira. Ao publicar sua obra e ocupar espaços de discussão pública, Narcisa Amália impôs a necessidade de uma revisão no cânone literário, que só muito recentemente passou a reconhecer a importância de seu nome.
A névoa, símbolo do que é vago, doloroso e impreciso, recobre a obra de Narcisa Amália, mas não a obscurece, pelo contrário, é por meio dela que a poeta encontra o caminho da expressão, da denúncia e da afirmação de si. Nebulosas é uma obra que dialoga com o Romantismo de seu tempo, rompendo, entretanto, com ele ao afirmar uma perspectiva feminina, lúcida e crítica. Narcisa Amália soube escrever com a coragem de quem enxergava além das brumas. Dessa forma, ao ler os versos dessa autora, hoje mais de um século depois, somos convidados a refletir sobre as formas de silenciamento ainda impostas às mulheres e sobre o poder da literatura como espaço de libertação.