por Márcio Adriano Moraes
A carioca Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) deveria ter sido uma das fundadoras da Academia Brasileira de Letras (ABL), se esta instituição não fosse marcada pelo tradicionalismo, justificado pela herança da Academia Francesa a qual só admitia homens em seu quadro. Em sua casa, por volta de 1897, muitas reuniões foram realizadas para a consolidação da ABL, a qual só aceitaria uma mulher entre seus membros em 1977 quando a cearense Raquel de Queiroz foi empossada. O marido de Júlia, porém, o poeta e dramaturgo Filinto de Almeida se tornou o fundador da cadeira número 3, cujo patrono é Artur de Oliveira.
Memórias de Martha foi o seu primeiro romance, lançado em folhetim entre dezembro de 1888 e janeiro de 1889, editado como livro integral, dez anos depois, em 1899. Júlia Lopes de Almeida, dessa forma, foi, além de uma das mais importantes precursoras da literatura feminina no Brasil, uma escritora realista-naturalista, que deve figurar ao lado de Machado de Assis e Aluízio Azevedo.
A narrativa é conduzida de forma autodiegética, ou seja, em primeira pessoa por um narrador protagonista; no caso, a própria Martha, que relembra sua vida desde a infância até a idade adulta. Mediante um tempo psicológico, a história é marcada por experiências de dor, renúncia, sonhos frustrados e resistência diante das limitações sociais impostas à mulher pobre no Brasil do século XIX.
Desde criança, Martha sofre com a pobreza e as privações materiais e afetivas. A primeira lembrança evocada no livro é da morte do pai, quando contava apenas com cinco anos de idade, e a consequente mudança para o cortiço de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Aí é criada por uma mãe resignada, porém trabalhadora, a qual lavava e engomava para fora. Nesse espaço de marginalidade, marcado pelo determinismo, Martha conviveu com a vizinha, a “Ilhôa”, e seus filhos Carolina, Maneco e Rita. A sua relação com eles é marcada por ambivalência: por um lado, a menina encontra em Carolina, a filha mais velha, gestos de proteção e afeto; por outro, é vítima da grosseria da mãe, acrescida das agressões morais do jovem alcoólatra Maneco.
Contrastando com essa realidade do cortiço, em uma das ocasiões em que acompanhou a mãe em uma entrega de roupas, Martha conhece Lucinda. Essa menina representa desde cedo o ideal de beleza, riqueza e status social. Vestida com roupas elegantes e dona de um vasto enxoval de bonecas, Lucinda humilha a protagonista com seu orgulho e vaidade, expondo, com crueldade infantil, as diferenças sociais que as separam. Quando a mãe de Lucinda oferece à narradora um vestido usado da filha para lhe dar de presente, ao olhar para Martha diante do espelho, Lucinda a humilha com a frase: “Parece um macaquinho!” Essa cena é um marco na construção da autoestima de Martha, pois associa o espelho, símbolo da identidade, à vergonha, à exclusão e à consciência dolorosa de sua condição social.
Esse momento, porém, foi significativo, pois a partir dele, a mãe de Martha, incentivada pela freguesa rica, matricula a filha na escola. Nos primeiros anos de estudo, a escola representa para Martha um espaço de descoberta, pertencimento e esperança diante da realidade opressiva do cortiço. Embora enfrente dificuldades iniciais, como o isolamento e a timidez, ela encontra no ambiente escolar a possibilidade de construir vínculos, desenvolver sua inteligência e sonhar com um futuro diferente. Nesse processo, duas amigas marcam sua trajetória: Mathilde e Clara Sylvestre. A primeira, uma menina mulata e pobre, foi a primeira a ajudá-la nos estudos, com paciência e generosidade, até ser acusada de roubo e posteriormente expulsa da instituição. Já Clara Sylvestre, bonita, vaidosa e popular, oferecia a Martha a experiência da amizade envolta de afeto e também de pequenas rivalidades. Em um encontro inesperado posteriormente, já as duas adultas, Martha vê Clara, vestida de forma extravagante e acompanhada por homens, havia se tornado prostituta. O reencontro evidencia as duras realidades enfrentadas por mulheres pobres no século XIX e destaca a importância da educação como meio de ascensão social.
O acesso à educação, dessa maneira, proporciona-lhe não apenas o aprendizado formal, mas também uma nova forma de enxergar a si mesma, alimentando o desejo de mudança e de libertação da condição subalterna imposta pela pobreza. Assim sendo, ao crescer, Martha se dedica aos estudos, sonhando com uma vida melhor, almejando ser professora.
Durante sua juventude, apaixona-se por Luiz, um jovem estudante de Medicina, primo de Dona Anninha, sua mestra, o qual conheceu durante uma viagem que fez pelo campo, em Palmeiras. Ele surge como a promessa de um amor verdadeiro e transformador, incutindo em Martha o sonho de ser escolhida e valorizada. No entanto, ao longo do tempo, ele se revela vaidoso, superficial e instável, abandonando-a sem explicações e se casando com Leonor, uma jovem rica, bonita e de posição social elevada. O contraste entre as duas mulheres reforça na protagonista o sentimento de inadequação, já que Leonor, além de desfrutar de conforto material, parece corresponder ao padrão de feminilidade valorizado pela sociedade: delicada, loira, discreta, doce e socialmente apropriada. A escolha de Luiz revela, assim, o quanto os laços afetivos eram atravessados por interesses sociais e econômicos, e o quanto as mulheres pobres, como Martha, eram invisibilizadas ou preteridas diante das convenções da elite.
A mãe de Martha, ao longo da narrativa, apresenta um quadro de saúde cada vez mais debilitado. Mesmo diante de sua fragilidade, mantém-se firme no cuidado com a filha, alimentando um único desejo: vê-la protegida, segura e casada. Para ela, o casamento representa estabilidade e amparo, uma garantia de que Martha não enfrentará sozinha as durezas da vida. Esse desejo materno, embora nasça do amor, também reflete os valores sociais da época, nos quais o destino da mulher estava atrelado à figura do marido e à instituição do matrimônio como forma de salvação social.
Então, Miranda, um freguês antigo e bem mais velho que Martha, faz o pedido de casamento num gesto afetuoso e respeitoso, mas para Martha representa menos uma realização amorosa e mais um ato de resignação. Sem nunca o ter amado de fato, ela aceita a proposta como uma forma de segurança diante da convalescência da mãe e da solidão iminente. O casamento com Miranda simboliza, dentro da obra, a renúncia ao amor idealizado e a conformação com a realidade.
O desfecho de Memórias de Martha é marcado pela morte da mãe da protagonista, como num fechar de um círculo, já que o início traz o falecimento do pai. Esse momento encerra, portanto, o ciclo de dedicação e abnegação materna, e deixa em Martha não apenas a dor da perda, mas também uma herança moral: a força, a coragem e o senso de dever. A morte da mãe representa, dentro da narrativa, o rompimento definitivo com a infância e o passado, ao mesmo tempo em que sela o destino da protagonista, agora, sozinha, casada com Miranda, e marcada pela melancolia de uma vida que nunca lhe permitiu viver plenamente seus afetos e sonhos.