por Márcio Adriano Moraes
“Amor”, de Clarice Lispector, é um dos contos da coletânea Laços de Família, de 1960. Intensamente introspectiva, a narrativa explora o cotidiano automatizado e o conflito entre a vida íntima de Ana e o papel social que ela desempenha. O instante epifânico ocorre quando a aparente estabilidade da vida doméstica de Ana se desfaz diante do vislumbre de um homem cego mascando chicletes.
Ana, única nominada, já que as outras personagens são identificadas por seus tipos: marido, filho, cego, motorista... é apresentada como uma pessoa que “caiu num destino de mulher” tradicional de meados do século XX e se adaptou perfeitamente a ele: esposa, mãe, dona de casa, estruturada por uma rotina previsível. Contudo, esse cotidiano é apenas uma superfície, uma aparência harmoniosa construída para sufocar uma “estranha doença da vida”, vestígio de uma juventude associada à desordem, ao desejo artístico e à liberdade.
A visão do cego mascando chicletes representa a irrupção do inominável, do incompreensível e do estranho familiar (unheimlich freudiano) no centro da sua vida ordenada. A imagem do cego, que vê “com os olhos abertos” mas vive na escuridão, torna-se um espelho que revela a cegueira simbólica de Ana. Ele mastiga “goma na escuridão” como quem repete um gesto automático, alienado, mas ainda assim profundamente perturbador por sua inutilidade e resistência silenciosa.
A partir desse encontro, Ana mergulha em um processo de desestabilização da identidade. A sensação de deslocamento, que se inicia com o susto no bonde, deixando o tricô e os ovos caírem, atinge o auge quando ela entra no Jardim Botânico, espaço alegórico de transição e introspecção. Ali, ela faz uma imersão em si mesma, em sua existência social, mergulhando em lembranças e percepções sensoriais que a conduzem à raiz da alteridade e da fragilidade humana.
A “cegueira” torna-se, então, um modo de ver diferente – uma visão além da aparência, que desorganiza o mundo e faz a personagem se ver à tona da escuridão, percebendo a precariedade de tudo o que a sustentava. No Jardim, entre beleza e decomposição, desejo e nojo, ela se reconhece pertencente a uma dimensão crua da existência, num momento de exceção em que a norma social (o “destino de mulher”) perde o sentido.
Ao retornar para casa, depois da epifania provocada pelo encontro com o cego e pela experiência de deslocamento no Jardim Botânico, como num quebrar das correntes da caverna platônica, Ana reencontra o mundo do qual parecia ter se afastado: o lar, os filhos, o marido, os gestos familiares. Ela abraça o filho pequeno com um aperto de não querer soltá-lo, de não querer perdê-lo. Diante dos insetos que percorrem sua casa – a aranha próxima ao fogão, a formiga que ela esmaga com o pé –, Ana percebe a delicadeza perturbadora da vida em sua forma mais efêmera, como se neles estivesse projetada a mesma fragilidade que a atravessou no Jardim Botânico. O gesto automático de matar a formiga, tão cotidiano quanto brutal, torna-se metáfora da ordem que ela precisa restaurar, ainda que sob a superfície continue latejando a consciência do caos. Segue-se o jantar em família, o qual ela ajuda a empregada a preparar, para seus irmãos, cunhadas e sobrinhos que se uniram a sua família, num tradicional momento de harmonia.
Após todos irem embora e as crianças dormirem, Ana olha pela janela do nono andar a vida noturna ao mesmo tempo adormecida e quente da cidade. O cego ainda a lhe pulsar por dentro certo desconforto, até o estouro do fogão. Preocupada, ela vê o marido diante do café derramado. Após o abraço em seu homem, num afago que se atravessa entre o amor e o inferno, Ana termina o seu dia se penteando diante do espelho.
O conto, por fim, não oferece uma resolução absoluta. Ana retorna à vida cotidiana, mas marcada pela experiência da alteridade e pela intuição de uma verdade que não se encaixa mais no seu antigo papel. O “mal” foi feito, como diz o narrador onisciente, e o mundo recomeça com uma “estranha música”, feita de rupturas silenciosas e de uma nova percepção de si e do outro.