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Márcio Moraes
no leito solidário de uma floresta altiva descansem por favor a minha poesia
Textos

Conto modelo baseado em "A hora da estrela", de Felicidade Clandestina

 

A noite toda com Guilherme Arantes

 

Eu nunca fui o mais descolado da turma. Não tinha walkman, nem fita cassete boa. Mas gostava de música de um jeito que até doía. Meu maior sonho, naquela época, era ouvir um disco do Guilherme Arantes do começo ao fim, em silêncio, sem ninguém me chamando, sem barulho de ônibus lá fora.

 

A menina do quarto andar do meu condomínio era alta, de olhos tristes e um jeito de quem já sabia de tudo. Um dia, na escada do prédio, comentou do nada que tinha o disco do Guilherme Arantes, aquele que tinha “Planeta Água”. Eu congelei. Era esse mesmo. O disco dos meus sonhos. Perguntei se podia ouvir. Ela respondeu, meio rindo:

 

— Qualquer dia desses, eu te empresto.

 

Foi aí que começou. Eu passava a tarde pensando em como seria escutar “Amanhã” como se fosse a primeira vez. Ou deixar tocar “Cheia de Charme” bem alto, mesmo sem ter ninguém charmosa comigo. Era só eu e a música.

 

Bati na porta dela no dia seguinte. Ela disse que o disco estava emprestado com uma prima. No outro dia, falou que o irmão estava ouvindo. Depois, que ia emprestar, sim, mas que tinha esquecido. E eu continuava subindo, batendo, voltando — com a esperança grudada em mim igual chiclete no tênis.

 

O pai dela me viu umas três vezes seguidas ali na porta. Achou estranho. Um dia, quando eu estava quase indo embora sem nem bater, ela abriu a porta de repente. O pai apareceu atrás. Quis saber o que estava acontecendo. A menina tentou disfarçar, mas não conseguiu esconder. O pai dela não falou nada de cara. Só ficou sério. Depois, entrou, e voltou com o disco na mão. Entregou para a filha e disse firme: "Vai emprestar agora. E você — virou pra mim — pode ficar com ele o tempo que quiser".

 

Eu agradeci baixinho, quase sem voz. Peguei o vinil com as duas mãos, com medo até de respirar. Voltei para meu apartamento andando devagar, pelas escadas, recusando a velocidade do elevador, como se estivesse carregando coisa viva. E, naquela noite, não coloquei o disco para tocar. Fiquei olhando a capa, passando os dedos na borda, decorando o nome das músicas. “Meu Mundo e Nada Mais” parecia estar me esperando. Quando fui ouvir de verdade, já era madrugada. A agulha desceu devagar, e a voz do Guilherme veio limpa, doce, falando de água, de futuro, de saudade.

 

Chorei. Mas não só pela música. Chorei porque, ali, no meu quarto escuro, com o toca-discos velho do meu tio, eu descobri que a felicidade existe — mas às vezes ela se esconde. E a gente precisa merecer ela no silêncio, na espera, no coração apertado. Naquele momento, não era mais só um garoto com um disco. Era um homem ouvindo a alma pela primeira vez.

Márcio Adriano Moraes
Enviado por Márcio Adriano Moraes em 28/03/2025
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