× Capa Meu Diário Textos Áudios E-books Fotos Perfil Livros à Venda Prêmios Livro de Visitas Contato Links
Márcio Moraes
no leito solidário de uma floresta altiva descansem por favor a minha poesia
Textos

Invenção e Memória, de Lygia Fagundes Telles

por Márcio Adriano Moraes

A paulista Lygia Fagundes Telles entrelaça imaginação e lembrança em seu livro de contos Invenção e Memória, publicado em 2000. Dentro do que convencionou chamar de Literatura pós-modernista ou Contemporânea, a obra pode ser classificada como uma coletânea de textos memorialistas, mas sem abandonar os elementos fantásticos e simbólicos que são marcas da autora. Lygia revisita sua infância, juventude e temas universais como a passagem do tempo, a morte, a solidão e a resistência diante das adversidades.

 

Estilisticamente, sua escrita carrega um tom introspectivo com uma prosa fluida, sem grandes rebuscamentos, mas carregada de intertextos. Inclusive uma aproximação com José Saramago através de diálogos sem marcas de travessões ou aspas, criando uma fusão entre narração e discurso direto. Os contos variam entre relatos aparentemente autobiográficos e narrativas ficcionais, mas todos carregam uma forte carga simbólica e existencial. A seguir, apresentamos uma síntese temática dos quinze contos que compõe a coletânea, destacando seus principais aspectos.

 

Que se chama solidão é uma narrativa em que a narradora-protagonista resgata sua infância, revisitando sua relação com as pajens que a criaram. A memória afetiva, a construção da subjetividade e as reflexões de classe se tornam evidentes. O elemento fantástico aparece na aparição da pajem Leocádia, reforçando a dualidade entre lembrança e assombração.

 

Suicídio na granja traz uma reflexão sobre a morte voluntária, utilizando um paralelo entre o comportamento humano e o dos animais. A história de um galo que parece se deixar morrer após perder seu companheiro, um ganso, sugere uma metáfora sobre luto, solidão e o mistério do suicídio.

 

O menino e o velho apresenta um desfecho chocante e inesperado, subvertendo a noção de inocência infantil. O conto narra a relação entre um velho e um menino, que, ao final, assassina o idoso e foge. A história é permeada por um tom inquietante, colocando em xeque a idealização da infância.

 

A dança com o anjo é uma narrativa com viés autobiográfico, a história se passa no período da Segunda Guerra Mundial e aborda a repressão feminina da época. Durante um baile, a protagonista tem um encontro misterioso com um jovem que se assemelha a um anjo. Ao mesmo tempo em que esse jovem misterioso simboliza a liberdade fugaz em meio a um ambiente de opressão, também representa um protetor, já que ele consegue tirar a protagonista de cena, evitando problemas com a polícia em virtude do dia da “pindura”. Obviamente, a memória se mescla ao fantástico, já que ninguém, além da narradora, viu esse “anjo”.

 

Se és capaz é uma narrativa que tem como base intertextual o poema If (Se), do autor britânico Rudyard Kipling. O conto narra a trajetória de um homem que, ao longo da vida, se distancia dos princípios éticos ensinados por seu avô a partir dos versos do poeta Kipling. A história é uma amarga reflexão sobre escolhas e a decadência moral.

 

Cinema Gato Preto é uma narrativa também de teor marcadamente autobiográfico, na qual a narradora lembra de sua adolescência e do impacto do cinema na construção da sua identidade, ao lado da mãe e do irmão. O cinema surge como um espaço de magia e descobertas, ressaltando a influência da arte na formação do indivíduo.

 

Heffman aborda o fascínio da juventude pela literatura e pelo teatro, narrando a experiência da protagonista com a dramaturgia, quando frequentava a livraria Jaraguá, um espaço de efervescência cultural, onde estudantes esquerdistas se reuniam para discutir literatura, política e teatro. O proprietário da livraria, Alfredo Mesquita, convida-a para atuar em uma peça intitulada Heffman. O conto foca no impacto da cultura e da arte na construção da subjetividade.

 

O Cristo da Bahia traz a história de uma relíquia de uma pequena igreja da qual os fiéis retiravam pedras preciosas. A narradora, então, faz um diálogo intertextual com o conto O Príncipe Feliz, de Oscar Wilde, em que a estátua de um Príncipe pede a uma Andorinha que retire suas preciosidades (sentidos) e dê a quem necessita. Lygia, assim, apresenta uma narrativa que problematiza a compaixão e a desigualdade social. A intertextualidade amplia a reflexão sobre o papel da arte e da literatura na denúncia das injustiças.

 

Dia de dizer não é um conto no qual a protagonista decide negar todas as solicitações que recebe ao longo de um dia, mas acaba refletindo sobre as consequências dessa atitude. O conto questiona a rigidez das decisões humanas e o impacto das escolhas no cotidiano. Um sim, por exemplo, dado a um vendedor de cartas perfumadas poderia mudar, pelo menos, em parte a sua realidade. O arrependimento é um sentimento que amarga decisões impulsivas.

 

Que número faz favor? é um texto que, através de um tom irônico e reflexivo, explora a relação entre a literatura e o desinteresse contemporâneo pelo conhecimento. A protagonista, uma escritora, sente o peso da desvalorização da literatura em sua palestra para jovens estudantes.

 

Rua Sabará, 400 é a narrativa mais explicitamente autobiográfica porque narra a experiência d Lygia e de seu marido Paulo Emílio na adaptação do romance machadiano Dom Casmurro para o cinema. A intertextualidade com Machado de Assis reforça a discussão sobre memória e subjetividade, além de trazer a reflexão da dúvida sobre o dilema da obra: Capitu traiu ou não traiu?

 

A chave na porta é um conto marcado pelo fantástico e pela nostalgia, em que a protagonista reencontra um antigo colega de faculdade, Sininho, que mais tarde se revela um fantasma. A narrativa reflete, dessa forma, sobre a impossibilidade de retorno ao passado e a presença do sobrenatural como metáfora da memória.

 

História de passarinho é um conto simbólico sobre aprisionamento e libertação, em que a relação entre um homem e um passarinho reflete a insatisfação com a vida e a possibilidade de mudança. A fuga da ave desencadeia uma transformação no protagonista, marcada por um final ambíguo, no qual ele deixa sua família rumo ao inesperado.

 

Potyra é mais uma narrativa fantástica que ressignifica mitos e dialoga com a colonização do Brasil. O conto apresenta a história do vampiro Ars Jacobjsen e sua relação com a indígena Potyra, utilizando o mito do labirinto para representar a opressão e o aprisionamento.

Nada de novo na frente ocidental é o último conto da coletânea e traz um relato memorialista que revisita a juventude da narradora e sua tentativa de bloquear a lembrança da morte do pai. As lembranças retomam o período da Segunda Guerra Mundial, quando foi uma legionária. A narrativa, pois, evidencia a luta entre lembrar e esquecer, mostrando a impossibilidade de controlar o fluxo do tempo.

 

Em Invenção e Memória, portanto, Lygia Fagundes Telles não apenas revisita sua trajetória pessoal, mas também constrói narrativas que dialogam com temas universais e humanos. A memória é o fio condutor da obra, funcionando tanto como ferramenta de resgate do passado quanto espaço de invenção, no qual a autora recria eventos, brinca com o tempo e transita entre realidade e ficção. Assim, combinando autobiografia, ficção e intertextualidade, Lygia Fagundes Telles nos convida a refletir sobre o tempo, sobre as escolhas e sobre a própria natureza da literatura, que, como a memória, é tanto invenção quanto testemunho.

 

1714126.png 1737911.png

Márcio Adriano Moraes
Enviado por Márcio Adriano Moraes em 09/03/2025
Alterado em 12/03/2025
Comentários

 

ASSISTA NO YOUTUBE