por Márcio Adriano Moraes
Preta, favelada, mãe solo, semianalfabeta; foi assim que a mineira Carolina Maria de Jesus (1914-1977) exsurgiu no cenário literário brasileiro em 1960 com o seu Quarto de despejo. Em tom documental, ela registrou sua vida na favela do Canindé, em São Paulo, marcada pela fome que lhe acompanhava ao lado de seus três filhos. Já em Casa de alvenaria, Carolina reflete sobre o peso da fama e a permanência das desigualdades que a cercam, mesmo após deixar a pobreza extrema, testemunhando a transição de uma mulher preta e ex-favelada para os espaços da burguesia, expondo, com lucidez e amargura, as contradições dessa ascensão.
Com auxílio de Audálio Dantas, Carolina conseguiu editar o seu primeiro livro. Esse seu “benfeitor”, porém, insistiu que ela continuasse a escrever diários, em vez da prosa, dramaturgia e poesia que ela ansiava se dedicar. A relação entre ele e ela se tornou sensível e ambígua, como é relatado neste Casa de alvenaria, originalmente de 1961, reeditado em dois volumes em 2021 pela Companhia das Letras. O volume 1: Osasco é, pois, um diário que se inicia no dia 30 de agosto de 1960 e se encerra em 20 de dezembro do mesmo ano, um intervalo curto, mas intenso, no qual a autora narra sua mudança para Osasco e sua entrada, ainda que marginal, na elite intelectual e artística. No entanto, longe de ser um relato de uma vencedora, Casa de alvenaria revela um desencanto profundo com a sociedade que a acolhe de maneira seletiva. Se antes Carolina enfrentava a fome e a miséria, agora ela se depara com o racismo velado, a solidão e as exigências de um meio que a enxerga como um fenômeno passageiro, sem conceder-lhe plena legitimidade como escritora.
Uma das marcas mais evidentes do livro é o sentimento de não pertencimento. No espaço doméstico, Carolina enfrenta conflitos com os filhos, que não lhe obedecem e a deixam exausta. A relação com sua empregada branca é permeada por tensões raciais e sociais, pois, mesmo trabalhando para a escritora, a funcionária mantém uma distância simbólica, recusando-se a usar os mesmos copos e pratos de sua patroa. A ironia dessa relação evidencia que a ascensão econômica da autora não significou, necessariamente, uma mudança estrutural na hierarquia racial do país.
No espaço público, o deslocamento é igualmente evidente. Convidada para eventos literários e políticos, Carolina percebe olhares de desconfiança e sente que sua presença incomoda. Em um dos trechos mais marcantes, ela afirma que, mesmo sem carregar complexos de inferioridade, sente que os brancos detestam sua presença. Essa constatação revela o racismo estrutural de uma sociedade que a aplaude como escritora, mas que não está disposta a aceitá-la plenamente como igual.
Dessa forma, a escrita de Carolina Maria de Jesus se torna um testemunho pessoal que denuncia as desigualdades sociais de um país que também passava por transformações políticas significativas. Se antes ela escrevia sobre a fome dos favelados, agora direciona sua crítica à burguesia, a quem acusa de manter as estruturas de exclusão. A autora expõe a hipocrisia da elite, que discursa sobre miséria, mas nada faz para combatê-la. Em sua visão, os poderosos são os verdadeiros responsáveis pela existência das favelas, pois não combatem o alto custo de vida nem permitem que os pobres tenham acesso à terra para plantar e sobreviver.
Esse posicionamento revela sua consciência social, que antecipa debates sobre justiça social e redistribuição de terras. Carolina percebe que a luta de classes é inevitável e prevê que, no futuro, os pobres, fortalecidos pelo conhecimento, poderão superar a dominação dos ricos. Essa visão, embora utópica, reflete sua esperança de transformação e sua recusa em aceitar as injustiças como naturais.
Outro aspecto notável da obra é a maneira como Carolina Maria de Jesus rompe com a tradição literária formal. Seu diário não segue um modelo rígido, já que ela incorpora cartas, poesias, reportagens, relatórios e reflexões filosóficas, inclusive de outras pessoas em seu livro. Sua linguagem é híbrida, mesclando registros cultos e populares, com marcas da oralidade e expressões sofisticadas adquiridas em suas leituras autodidatas.
Criticamente, ao longo do tempo, sua escrita foi alvo de julgamentos elitistas, que viam suas construções gramaticais não convencionais como “erro”. No entanto, a nova edição de Casa de Alvenaria preserva sua voz autêntica, reconhecendo que sua escrita não é um desvio, mas uma afirmação de identidade. Inclusive, há trechos fac-símile de seus manuscritos, dando maior verossimilhança linguística à sua obra. Assim, Carolina não apenas narra sua história; ela a inscreve na literatura brasileira de forma própria, recusando-se a se moldar às expectativas da norma culta imposta pelas elites. Não à toa, seu primeiro livro, Quarto de despejo, foi traduzido para dezenas de línguas.
Casa de Alvenaria – Volume 1: Osasco é, portanto, um livro que desmistifica a ideia de ascensão social como um caminho de libertação automática. Carolina Maria de Jesus, mesmo reconhecida como escritora, continuou a enfrentar as mesmas barreiras que a marginalizavam quando vivia na favela. Sua obra revela que o racismo e a desigualdade não são superados apenas com dinheiro ou reconhecimento público, pois são estruturais e persistem em todas as esferas da sociedade. Suas críticas ao elitismo, ao racismo e à desigualdade continuam atuais. Ao final, Carolina não nos oferece uma solução fácil para os dilemas que expõe, mas nos deixa com uma certeza: enquanto houver injustiça, sua voz continuará ecoando, lembrando-nos de que a luta pela dignidade e pela equidade ainda está longe de terminar.