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Márcio Moraes
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Textos

Coral e outros poemas, de Sophia de Mello Breyner Andresen

por Márcio Adriano Moraes

Em 1999, o Prêmio Camões de Literatura, o mais importante galardão literário da língua portuguesa, vai, pela primeira vez, para as mãos de uma lusitana: Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004). Seu livro Coral e outros poemas, publicado no Brasil em 2018, organizado pelo poeta fluminense Eucanaã Ferraz, apresenta ao leitor brasileiro uma síntese da trajetória poética de uma das maiores vozes da literatura portuguesa. Reunindo textos que atravessam desde a estreia da autora com Poesia (1944) até obras de maturidade como Ilhas (1989), a seleção destaca a coerência e a integridade de uma escrita que nunca se afastou de seus grandes eixos temáticos e formais. Dos quatorze livros explorados da autora, além de Artes poéticas, Poemas dispersos e Inéditos, destacamos a poesia em que o mar, a mitologia grega, a ética e a política se encontram em um fluxo contínuo de estética e reflexão.

 

Desde o primeiro livro, o mar desponta como elemento central da poética de Sophia. Em Dia do mar (1947) e Coral (1950), ele é mais que um cenário; é símbolo de eternidade, espaço absoluto em contraponto à fragmentação e à efemeridade humanas. O panteísmo perpassa esses poemas, dissolvendo as fronteiras entre o humano e o natural: “As ondas quebravam uma a uma / Eu estava só com a areia e com a espuma.” O ritmo incessante do mar sugere uma duração infinita, remetendo a um cosmos em que a vida e a morte se entrelaçam em harmonia.

 

A metáfora marítima, contudo, não se restringe à contemplação. Em Mar novo (1958), Sophia intensifica o confronto com a história e o tempo. A expressão “mar novo” simboliza o eterno que se renova, enquanto o “marinheiro sem mar” representa a perda da unidade, a alienação provocada pela vida moderna e urbana. É aqui que o mar deixa de ser apenas um espaço de revelação e torna-se espaço de ausência, marcando o início de um tom mais trágico e existencial em sua poesia.

 

A poesia de portuguesa é marcada por um equilíbrio entre a clareza sintática e o mistério temático. Seus versos são diretos e desprovidos de ornamentação excessiva, mas carregam imagens desconcertantes e uma densidade simbólica que exigem do leitor um mergulho profundo. Há uma harmonia clássica em sua dicção, mas que não renuncia a uma modernidade inquieta, optando por versos predominantemente livres e brancos.

 

Eucanaã Ferraz, em sua apresentação, destaca como essa escrita “nunca foi, no tempo, senão um desenrolar de si mesma”, revelando coerência estética ao longo de toda a produção. Sophia alterna a simplicidade vocabular com um tom elevado e austero, gerando um contraste entre o previsível e o surpreendente. Esperamos doçura e encontramos veemência; aguardamos o clamor e surge o silêncio.

 

A relação com a mitologia grega é outro aspecto fundamental de sua obra. A Grécia, com seus deuses e narrativas fundadoras, surge como modelo de harmonia e totalidade. Em Geografia (1967), após sua primeira viagem à Grécia, a poeta intensifica o uso de referências helênicas, adotando a civilização grega como um ideal ético e estético, um modelo axiológico que lhe permite refletir sobre valores universais como justiça, verdade e beleza. Em De Dual (1972), destaque para os poemas “Delphica”, “O Minotauro”, “O efebo” e “Os gregos”.

 

No entanto, Sophia não se contenta apenas com uma contemplação estética da mitologia. Ela ressignifica esses mitos para tratar de temas contemporâneos. Assim, o diálogo entre o politeísmo grego e o cristianismo em sua poesia não se dá como mero recurso literário, mas como uma tensão ética, em que a busca por harmonia se choca com a realidade histórica e política de seu tempo.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen não fugiu à sua responsabilidade cívica. A consciência política emerge, por exemplo, em Livro sexto (1961), além do referido Geografia (1967), especialmente ao denunciar o regime salazarista em Portugal. Poemas como “O velho abutre” evidenciam sua crítica ao autoritarismo, retratando a figura de Salazar em traços sombrios e monstruosos. Sua poesia, nesse sentido, funciona como um ato de resistência – uma arma ética contra as injustiças e a opressão.

 

A relação com o Brasil também adquire conotações políticas. Em poemas como “Brasil 77”, Sophia manifesta repúdio ao regime militar brasileiro, afirmando categoricamente: “Mas ao Brasil que tortura / Só podemos dizer não”. Essa denúncia, entretanto, não impede a autora de celebrar a riqueza cultural do país, homenageando poetas como Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, o que reforça a dualidade entre o Brasil imaginado e o Brasil real, dividido pela violência política.

 

Entre os livros apresentados na coletânea, O Cristo cigano (1961) merece um destaque especial. Considerado por muitos críticos um volume “descentrado” na obra de Sophia, ele explora a relação complexa entre a arte, o sagrado e a violência. A narrativa poética reconta a lenda de um escultor que, obcecado pela perfeição, sacrifica a vida humana para criar sua obra-prima. Aqui, Sophia coloca em xeque a ideia da arte que se realiza através da negação da vida. Diferente da maioria de seus poemas, em que a natureza e a criação poética são apresentadas como forças vitais e afirmativas, O Cristo cigano, cujo primeiro poema “A palavra faca” traz um intertexto com pernambucano João Cabral de Melo Neto, expõe o lado obscuro da criação artística: sua possibilidade de ser construída sobre a morte e o sofrimento. Para uma autora cuja poética se fundamenta na ética e na dignidade humanas, essa história funciona quase como uma antítese, um questionamento profundo sobre os limites morais da arte.

 

A viagem – geográfica, histórica e existencial – é outro fio condutor em Coral e outros poemas. Obras como Navegações (1983) e Ilhas (1989) ampliam a temática da expansão marítima portuguesa, ao mesmo tempo em que questionam a narrativa gloriosa dos descobrimentos, trazendo à tona a figura do marinheiro e suas experiências, muitas vezes marcadas pela solidão e pelo sofrimento, dialogando com seus conterrâneos, o renascentista Camões e o modernista Fernando Pessoa.

 

Ao final de sua trajetória literária, com os livros Musa (1994) e O búzio de Cós e outros poemas (1997), Sophia parece alcançar uma pacificação interior, em que a memória, a casa e a meditação se tornam espaços de contemplação. A luta constante entre luz e sombra, vida e morte, dá lugar a um tom mais introspectivo e reconciliador.

 

Por fim, Coral e outros poemas é uma coletânea que revela a coerência e a profundidade da poesia da portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. Em seus versos, encontramos uma linguagem que prima pela clareza formal, mas que convida o leitor a um mergulho em temas densos e universais. A poeta equilibra o clássico e o moderno, o natural e o histórico, o pessoal e o coletivo e a estética. Sua poesia, marcada por um lirismo sem excessos, reflete uma postura ética frente ao mundo, que rejeita o autoritarismo, afirma a dignidade humana e busca a harmonia com a natureza. Ao mesmo tempo, não se esquiva das tensões e contradições da existência, abordando o tempo, a morte e o desencontro em seus múltiplos sentidos.

 

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Márcio Adriano Moraes
Enviado por Márcio Adriano Moraes em 27/02/2025
Alterado em 09/03/2025
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