por Márcio Adriano Moraes
O romance Bom Dia Camaradas, publicado em 2001, pelo escritor angolano Ondjaki, ambienta-se nos anos finais do socialismo em Angola com a presença de cubanos que lá permaneceram entre 1975 e 1991. Para o foco narrativo, o autor optou pela primeira pessoa, a partir do olhar infantil de um garoto que acompanha as transformações sociais e políticas ao seu redor, enquanto lida com experiências cotidianas de amizade, escola e família. Esse foco também contribui para a presença do lirismo e da oralidade na escrita de Ondjaki, pois a linguagem reflete o modo de falar das crianças e das pessoas ao redor do protagonista. O uso de expressões angolanas e gírias confere autenticidade ao texto e aproxima o leitor da realidade retratada. Além disso, o lirismo, aliado a um tom nostálgico e bem-humorado, constrói um retrato afetivo e ao mesmo tempo crítico de um período marcante na história do país africano.
Quanto ao enredo, a história acompanha um menino de doze anos que vive em Luanda no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, em meio à presença de professores cubanos e de um regime socialista que marca seu cotidiano. O protagonista, sem assumir sua identidade explícita, mas sugerida: Ndalu, observa a realidade ao seu redor, questionando-se sobre temas como a independência de Angola, as condições de vida, a presença estrangeira e a política do país. A trama não segue uma estrutura linear rígida, funcionando mais como um mosaico de experiências e episódios que capturam a essência da vida na Angola socialista. O enredo, dessa forma, não é baseado em grandes eventos ou reviravoltas dramáticas, pois se trata de fragmentos da rotina do narrador, como, por exemplo, suas conversas com o camarada Antônio; sua interação com os professores cubanos; as brincadeiras e aventuras na escola e no bairro; e a descoberta de que os cubanos, com o tempo, irão partir, marcando uma transição simbólica para um novo momento político do país.
Além de Ndalu e o Camarada Antônio, o qual representa uma camada da população que viveu tanto no período colonial quanto no socialismo, cujas falas muitas vezes carregam um tom nostálgico sobre o tempo dos “tugas” (portugueses), o que gera tensão com o discurso oficial da independência, há outros personagens significativos, como o Camarada Professor Ángel e a Camarada Professora María, professores cubanos que representam o ideal socialista e a missão internacionalista de Cuba em Angola; Bruno, Cláudio, Murtala, Petra, Romina, amigos do protagonista que compartilham com ele as experiências da infância, sejam as aventuras na escola ou os temores diante de boatos e perigos urbanos, como o temido Caixão Vazio; além dos pais do narrador, os quais representam a classe média angolana ligada ao governo e aos benefícios do regime socialista, já que o pai trabalha no ministério e a mãe é professora. A construção dos personagens é feita, porém, de maneira fragmentária, com descrições breves e muitos diálogos, mas, ainda assim, cada um deles se destaca pela singularidade de suas falas e ações.
O espaço da narrativa é Luanda, capital de Angola, no período pós-independência, durante os últimos anos da presença cubana no país. A cidade, descrita pelo olhar do protagonista, emerge com um misto de modernidade e precariedade, em meio a mudanças políticas e sociais. Elementos como escolas, mercados, bairros e o próprio ambiente doméstico reforçam essa caracterização. Já o tempo narrativo não é rigorosamente linear, pois os capítulos são construídos como pequenos episódios da vida do narrador, criando uma sensação de fluidez entre passado e presente. Essa estrutura reforça a ideia de memória e saudade, um dos elementos centrais da obra. A passagem do tempo, assim, é percebida através da transformação da infância, da iminência da partida dos cubanos e da percepção gradual das mudanças políticas que moldam a vida do narrador e dos personagens ao seu redor.
A narrativa traz diversas questões sociais, políticas e culturais, entre as quais se destacam: a infância, vista de maneira nostálgica, num tom memorialístico, com passagens que sugerem uma reflexão do autor sobre sua própria infância (Ondjaki é pseudónimo literário de Ndalu de Almeida); a política e o socialismo, pela presença de professores cubanos, cujos discursos revolucionários e a organização do ensino são retratos do regime socialista em Angola; as relações interculturais, mediante a convivência entre angolanos e cubanos, gerando situações de aprendizado mútuo, mas também de estranhamento; nostalgia e mudança, através da captura de um momento de passagem, tanto individual (do narrador) quanto coletivo (da sociedade angolana); e a violência e o medo, sobretudo no episódio do Caixão Vazio, da menção à guerra civil e dos pequenos episódios de violência urbana, os quais mostram que a infância do protagonista não é alheia ao medo e à incerteza.
Bom Dia Camaradas, é, portanto, uma obra que mescla o tom nostálgico e lúdico da infância com a observação crítica da realidade social e política de Angola. Um romance que se destaca pela sua linguagem coloquial, pelo lirismo e pela leitura reflexiva. Ao retratar um período de transição, tanto na vida do protagonista quanto na história de Angola, a obra sugere que as mudanças são inevitáveis, mas a memória e os afetos permanecem.