por Márcio Adriano Moraes
Durante os anos de chumbo da Ditadura Militar no Brasil, a paulista Hilda Hilst (1930-2004) escreve o drama O Verdugo (1969). A peça problematiza a relação entre autoridade, ética e revolta, abordando a recusa de um carrasco em executar um condenado, cuja culpa reside no simples ato de incitar o pensamento crítico e a resistência.
No âmbito do gênero dramático, O Verdugo apresenta características que se afastam do teatro realista tradicional. A obra aproxima-se da alegoria e do simbolismo, evocando um cenário universalizado e atemporal, no qual as personagens são identificadas apenas por suas funções sociais: o Verdugo, a Mulher, o Filho, a Filha, os Juízes, o Carcereiro, os Cidadãos e o Homem. Essa escolha retira das personagens qualquer identidade individual específica, reforçando a ideia de que a história poderia ocorrer em qualquer sociedade sob regimes autoritários.
A peça é estruturada em dois atos, com cenários distintos que delineiam o conflito central. O primeiro ato se passa na casa do Verdugo, um espaço privado onde se desenrola o drama familiar e ético do protagonista. Ele se recusa a executar um homem condenado por incitar a população à reflexão e à busca pela liberdade. Essa decisão desestabiliza o núcleo familiar, pois sua Mulher e sua Filha veem no cumprimento da sentença uma oportunidade de ascensão social, já que a execução lhes renderia uma significativa quantia em dinheiro. No segundo ato, a ação se desloca para a praça pública, onde a execução deve ocorrer. Ali, o Verdugo enfrenta a pressão das autoridades, representadas pelos Juízes, e da população, que oscila entre a empatia pelo condenado e a aceitação de sua morte como um evento inevitável. No desfecho trágico, a manipulação do discurso pelas autoridades, somada à cobiça da população, faz com que o Verdugo e o Homem sejam linchados pela multidão. O espetáculo da violência coletiva sobrepõe-se à justiça e à ética, consolidando a crítica da peça à passividade das massas diante da opressão.
A peça não estabelece um tempo histórico preciso, reforçando sua dimensão alegórica. A ação se desenrola em um espaço que poderia pertencer a qualquer sociedade regida pelo autoritarismo. A transição entre os atos, do ambiente doméstico para o espaço público, simboliza a ampliação do conflito individual para uma esfera coletiva, em que as tensões éticas se tornam lutas políticas.
O protagonista encarna um dilema moral e existencial. Sua recusa em cumprir a sentença marca o rompimento com um sistema que o reduzia a um mero instrumento da lei. A hesitação do Verdugo reflete o embate entre a obediência cega e a responsabilidade ética, um tema recorrente em debates filosóficos sobre totalitarismo e submissão. Inspirado por suas interações com o Homem, ele representa a possibilidade de resistência dentro do próprio sistema opressor. Sua morte no final da peça pode ser lida como um sacrifício, uma tentativa de romper com o ciclo da violência por meio do exemplo.
A figura do condenado, por sua vez, assume um papel alegórico substancial. Ele fala de amor, liberdade e da necessidade de conhecimento, conceitos que ameaçam a ordem estabelecida. Sua presença alude a figuras messiânicas e revolucionárias, como Jesus Cristo e líderes políticos perseguidos por regimes autoritários. No entanto, sua voz é suprimida, e sua morte serve de alerta para o destino dos que ousam desafiar o poder.
A peça expõe como a linguagem pode ser manipulada para justificar a violência. Os Juízes deturpam o conceito de amor, transformando-o em submissão e conformismo, ao passo que reconfiguram a rebelião como crime. Essa inversão de valores é um dos mecanismos fundamentais dos regimes opressores.
O Verdugo, portanto, é uma peça que se lê histórica e filosoficamente. Seu caráter alegórico permite que seja lida como uma crítica ao autoritarismo em qualquer contexto, transcendendo seu tempo de enunciação, ou seja, o Regime Militar no Brasil. Em sua obra, Hilda Hilst propõe uma reflexão sobre moralidade, poder e resistência, problematizando a conformidade social e a aceitação da violência institucionalizada. O desejo de matar o outro por ser contrário às imposições vigentes e pregar a liberdade não se limita ao espaço cênico, repercutindo nas estruturas de dominação que se perpetuam ao longo da história. A peça, pois, desafia-nos a olhar para além do patíbulo, a questionar a natureza da justiça e a reconhecer, no olhar do condenado, a inquietante verdade de nossa própria humanidade.