por Márcio Adriano Moraes
Nascida no ano da Semana de Arte Moderna no Brasil, a lusitana Agustina Bessa-Luís é uma das principais vozes da literatura portuguesa do século XX. Ingressou no universo da ficção em 1948 com a novela Mundo fechado. Sua produção é vastíssima, com dezenas de obras, sendo A Sibila uma das mais significativas, tanto em sua estrutura narrativa quanto na caracterização das personagens, lançada em 1954. O livro centra-se na figura de Joaquina Augusta, conhecida como Quina, cuja vida é rememorada por sua sobrinha Germa. A narrativa, de forte teor introspectivo, explora temas como o poder feminino, o destino, as relações familiares e o contraste entre os valores rurais e urbanos. Com um enfoque que mescla o regional e o universal, a obra oferece uma reflexão profunda sobre a condição humana, por meio de personagens complexos e atmosferas carregadas de simbolismo.
Joaquina Augusta (Quina) é a protagonista do romance, a qual possui uma mistura de fragilidade e força, sendo venerada por seu conhecimento intuitivo e sua capacidade de liderança. O enredo, assim, desenvolve-se a partir das memórias de Germa, que reconstroem a vida de Quina em três fases principais: a infância marcada pelo trabalho árduo e pelas relações conflituosas com a mãe, Maria da Encarnação; a juventude, quando uma doença a transforma em uma figura respeitada e influente; e a maturidade, em que se torna a administradora da Vessada e alcança o auge de seu poder simbólico como “sibila”. Ao longo da narrativa, são apresentados diversos episódios que ilustram o cotidiano e os dilemas das personagens, em especial as mulheres da família.
Além de Quina, sua mãe, Maria da Encarnação, casada com Francisco Teixeira, possui relevância narrativa. Ela é uma mulher de personalidade forte e autoritária, que enfrenta constantes desafios devido à infidelidade e à irresponsabilidade do marido. Este representa o arquétipo do homem boêmio, que desperdiça os recursos familiares em aventuras amorosas e prazeres efêmeros. Outra personagem feminina de destaque é Germana (Germa), narradora secundária, que ao mesmo tempo que admira a tia Quina, tem-lhe algumas críticas. Apesar de Germa ter voz narrativa, trazendo suas memórias e perspectivas, sobretudo, sobre a tia, o romance possui um foco predominantemente onisciente, em terceira pessoa, com um narrador heterodiegético que utiliza um tom irônico e reflexivo para comentar os eventos e as personagens.
O tempo da narrativa é não linear e abrange cerca de um século de história, desde meados do século XIX até o período de reflexão de Germa, em 1953. A autora utiliza recursos como elipses, digressões e flashbacks para construir um tempo fluido, que reflete o fluxo de consciência das personagens. Há também um forte componente de tempo psicológico, especialmente nas cenas que exploram as angústias e reflexões de Quina e de outras figuras centrais. A memória, dessa forma, tem papel fundamental na estrutura narrativa. A história de Quina traz reflexões sobre as mudanças ocorridas na família e na propriedade da Vessada ao longo de décadas. Esse recurso é utilizado para construir um tempo narrativo cíclico, em que o passado e o presente se entrelaçam constantemente.
O espaço físico da narrativa é concentrado na Quinta da Vessada, uma propriedade rural localizada em uma aldeia de Entre Douro e Minho. Esse espaço é carregado de significado, representando tanto a herança familiar quanto o universo de tradições que molda a vida das personagens. O contraste entre o campo e a cidade evidencia uma visão dicotômica da realidade social, em que o campo é associado à autenticidade e à permanência, pela forte ligação com a terra, enquanto a cidade simboliza a efemeridade e a corrupção moral, um espaço artificial e superficial.
O destino desempenha um papel central na narrativa, sobretudo na vida de Quina. Desde seu nascimento, a personagem parece marcada por uma trajetória inevitável, que a conduz a assumir uma posição de respeito e autoridade. O apelido “sibila”, conferido a Quina, remete às sacerdotisas da Antiguidade que possuíam o dom da profecia, sugerindo que a personagem detém uma compreensão intuitiva e mística dos acontecimentos ao seu redor.
Outro tema fundamental no romance é a dimensão matriarcal, na qual as mulheres são responsáveis pela manutenção da casa e das tradições. Maria da Encarnação, mãe de Quina, e a própria Quina representam a capacidade de resistência e liderança em um contexto rural onde os homens, como Francisco Teixeira, são frequentemente retratados como frívolos e irresponsáveis.
A Sibila, portanto, é uma obra de profundidade psicológica, que transcende a história individual de Quina para abordar questões universais sobre a condição humana, o poder do destino e a luta pela identidade em um mundo marcado por tradições e tensões sociais. Por meio de uma narrativa fragmentada e densa, Agustina Bessa-Luís constrói uma reflexão sobre o papel das mulheres na manutenção da memória e das estruturas sociais, oferecendo uma perspectiva crítica sobre os valores culturais de Portugal.