BRITO, Vívian. Estado de caos. São Paulo: Catrumano, 2011.
“In principio creavit Deus caelum et terram. Terra autem erat inanis et vacua, et tenebrae super faciem abyssi, et spiritus Dei ferebatur super aquas” (Gênese, 1, 1). No princípio, era o caos, mas também o meio e o fim. Às trevas que cobriam o abismo foi dada a luz. Num gesto, num “Fiat”. A lírica de Vívian Brito nos convida a um aprendizado que data de uma era remota. Mas não uma era marcada pelo tempo, mas por uma profundidade interna. Lá no fundo, antes “D”. Deixemos para o leitor curioso o desvendar desta era. O enigma que apreciamos na abreviatura “A.D.” reporta para os mistérios do nosso tão conhecido “a.C”.
Porém, o “DNA” de uma docente nasce consigo e mesmo antes do diploma flui nas veias sua longa cadeia. Uma prisão digna de ser dom. Numa ingenuidade de quem acredita em Papai Noel, o sonho de mudar o mundo. Mas desde os primeiros anos do serviço professoral, o questionamento exsurge no Ano II A.D.: “o que é que tô fazendo aqui?/ esbarrada/ concentrada/ empregada/ afogada/ sufocada/ saturada/ impregnada/ em tanto –ada”. Para chegar ou voltar ao caos, para chegar ou voltar ao “nada”. E no último ano “A.D.”, o “Estado de nervos”, o “Estado de injustiças”.
Seu aprendizado continua numa nova era, “D.D”. E aqui, percebemos, logo no primeiro ano, a intensificação de sua insatisfação, pois suas mãos estão amordaçadas e sua boca atada. Típico dos que são obrigados a aceitar toda uma situação vinda de cima, mas com atitude de baixeza. Com o seu descontentamento, Vívian clama, através de uma assonância, o seu “Oh” revoltoso, o seu grito que esbarra na aliteração da bilabial surda e seca do “P” de “para”: “pelo a pelo escorro pelo ralo”. No desespero do seu caos interior, a poeta (peço licença à gramática para tornar comum de dois este vocábulo) remonta a Manoel Bandeira com a idealização de uma cidade da antiga Pérsia, Pasárgada. Tal qual Bandeira, aqui, vista ironicamente como o lugar ideal para se viver, longe desse “Estado de alerta”.
A angústia do eu lírico se intensifica. Portas se abrem e fecham. Dias e noites se passam. E sua insatisfação aperta. É preciso quebrar as algemas da alma, se libertar e sair, como o homem preso na caverna de Platão. Contudo, paradoxalmente, o eu pede para fechar janelas e portas para ser contemplada apenas e relembrar os seus dias de não viver, à espera do seu futuro riscado. Mas sua cabeça dói, o mundo se cala diante de seu Estado de indignação, e sua alma fala no silêncio. Onde encontrar refúgio para este Estado de Caos? A fé, o espírito religioso que se anuncia na epígrafe do livro aparece no “Ano XIX D.D.”. Após questionamentos, o céu se abre e Deus sorri. Entretanto, o algarismo que está diante de si é um “seis vírgula zero”. Como este é o número concreto de sua folha, Vívian Brito utiliza os recursos dos poetas concretistas para mostrar como a vírgula vai sumindo, reduzindo mais e mais, “meiazero”. Com esse neologismo singular, mostra a sua condição. Não é apenas um “zero” que já traz em si o estado de nulidade, mas um “meiazero”, mais nulo ainda.
Após onze anos, vivendo o seu “D.D.”, a poeta ousa um voo e, como um pássaro, se liberta do Estado. Das garras massacrantes deste poder delegado que não reconhece o mérito de seus mestres. É preciso, agora, reencontrar-se. Adeus ao Estado, sem remorso. E no último verso do poema “mas pqp como demorou”, somente um leitor ingênuo não perceberia o ato de rebeldia e de desabafo na abreviatura “pqp”. Isso mesmo, dizer explicitamente um “puta que pariu” feriria a candura dos que ainda continuam como ovelhas, fingindo uma felicidade ou sufocando sua insatisfação perante este Estado que é um caos.
A “Escolha” de Vívian é uma alegoria de estações. As cores reverberam em sua poesia numa bela primavera. Suas folhas caídas no outono renascem para uma nova etapa. E o Agosto que chega com seus encantos, suas festas, sua fé. Como o Espírito que paira sobre as águas, a poesia de Brito ganha outro rumo. As cores dos festejos dos Catopês, Marujos e Caboclinhos trazem um ar de vida. E o espírito saudosista se reverbera no poema “Lembrança”, através das paredes que guardam histórias de um tempo que não volta mais. A dedicatória a Marta Verônica, professora de História da Arte, completa a semântica do poema, pois na arquitetura artística de paredes que sabem o que houve, a história é recontada cotidianamente mediante a arte. Essa mesma temática se estende para o próximo poema “Descaso”. Apesar de o título remeter a um gesto irresponsável, a conclusão da poeta é magna: “os casarões dormem, não morrem, esperam”. E esse estado de espera transpõe para a poeta que também “Espera”, padecendo a dor da saudade, com resquícios de angústia. A busca de contato, apoio, cuidado para a mente, corpo e alma parecem querer algo mais do que apenas a fé, já muito bem enraizada. A falta persiste, o frio persiste.
A resposta para essa constante espera aparece logo em seguida: “Milagres”. Vívian Brito é toda força, toda fé, todo vigor. Somente um ser que encontra pouso no transcendente consegue sair de seu estado de caos. De forma contemporânea, vislumbramos o espírito barroco que sai das trevas e vislumbra o céu.
Em “Abdução para ser”, o desejo de ser raptada, seduzida para a vida. Uma teia intertextual perpassada por mitologia, Antoine de Saint-Exupéry, Lewis Carroll, Platão, os parnasianos e por pensamentos junguianos e sartreanos. E esse ser vislumbra em sua “Aurora” o choro anafórico constante. Como uma Alice no seu país dos espelhos, com o relógio parado, deseja a menina entrar na toca do coelho para voltar mulher.
O desespero, a ânsia herética dos que buscam ao Pai insistentemente nos momentos de dor se manifestam no poema “Cruz vazia”. Numa linguagem simples, uma menina deixa a cruz cair, despregando o Cristo que misteriosamente faz o que ela pede no início do poema: “O que faz aí pregado que não me ajuda?” “Desce e vem ver como estou”.
A simplicidade linguística aparece no poema “Tia Tê”. Essa tia é a grande mãe, aquela que acalenta, que resolve, que faz, a devota. Em “Coragem”, a felicidade pacata do sertão norte mineiro encontrará ressonâncias nos versos de “Prece”. Um menino que se fez homem no campo, com força e dignidade.
A imagem de uma Brasília aparece como a urbs para contrastar com o locus amoenus sertanejo. Numa analogia forçada, remontamos ao ideal árcade de fugere urbem. No entanto, o questionamento sobre o amor no poema “Será?” transpõe o eu lírico para Roma, para a cidade eterna, a qual traz, no nome, a palavra “amor” invertida.
Como poeta contemporânea que bebe nas águas modernistas, Vívian Brito transpõe para o seu “Play2tempo” duas gerações: a da pipa e a do vídeo game. Também em “Desapego” o saudosismo se manifesta através de dois polos, as cartas e e-mails. O choque de gerações. Eis o tempo capaz de mudar o mundo. Seus guardiões são a chuva, o vento, o frio, o amanhecer, a tempestade que mediante um “Ciclo intempestuoso” no qual se convergem a brisa leve e a fúria viva, “Tudo recomeça”. É que o artista é capaz de sempre restaurar esse tempo, pois o amor de artista está em sua arte, o qual vive constantemente “num ritual de criar e recriar o amor todo dia”. Por isso, aproveitar o tempo, a essência vital, mesmo num vidro, ousadamente, a “Vida” em carpe diem, perder-se nos braços da vida e se deixar envolver é o convite que a poeta nos faz. Como seres iluminados nos ater no tempo presente, viver plenamente cada instante, pois “vislumbrar o futuro é um mal”. Deixar que a “Roda girante” da vida rode e gire num gesto concreto: “lentalargafartamortaviva”, pois a “Liberdade” não está na gaiola, mas no canto da janela.
A lírica de Brito questiona, impulsiona, reflete, protesta. A necessidade de nomear as coisas, típica do ser humano, mortal, livre e mentiroso. A prostituição é a temática do poema “Responsabilidade”, um grito, uma indignação, pois uma menina de treze anos oferta corpo e alma e “Ninguém faz nada/ Ninguém fala/ Ninguém vê”. O Medo imperioso. A vida como um carrossel num “Parque de diversões” a girar, fazendo-nos tontos, tontos de poesia, porque somente a arte abranda, acalenta. Assim, Vívian descarrega a sua metapoesia nos poemas “Poesia em alto relevo”, “Inspiração”, “Dor”, “Desejo” e “Sou poeta”. Em “Cada centímetro”, a metalinguagem também se manifesta e percebemos o projeto estético da poeta ao confirmar a preferência por versos livres e brancos. Isso se ratifica no poema “Quatro quatro três três” que alude à estética do soneto clássico italiano, dois quartetos e dois tercetos. Uma das características dessa forma poética são suas rimas bem dispostas e coincidentes nos quartetos e tercetos. Entretanto, em seu soneto que não segue regularidade métrica, muito menos se aproxima do verso heróico, Brito diz: “Rimar acontece, às vezes/ mas puro acidente”.
O amor aparece de forma intensa, inclusive com recursos concretistas que possibilitam uma leitura variada como na contiguidade do verso: “meameteamomeameteamo”. Vinícius de Moraes e Tom Jobim também são referendados, em seu amor, no poema “Ilusão”. A conotação erótica aparece em “Decepção”, por meio de imagens sugestivas proporcionadas pelas palavras entrega, cama, coração puto e peito vadio. Também o poema “Laço” remete a esse lado sensual: entrelaçar, vai e vem, trançada, enlaçados juntos. A doação, o calor, a calma, a fúria, a vontade, o sonho se encontram e se tornam “Iguais”. A vida metaforizada numa pia ou chuveiro, os quais precisam sempre de reparos para parar os vazamentos. Em “Mídia eu”, o eu lírico oferece seu amor a um consumidor. De fato, na contemporaneidade, o amor se tornou objeto de consumo e também descartável. Curiosamente em “Anemonamor”, lemos no título “anêmona”, um cnidário, ser inferior que habita as águas; e “amor”. Direcionado ao mar misterioso, ao seu lindo mar, o eu vê nesta imensidão azul uma devota relação de dependência. O verso “eu vivi pra ti” possibilita uma dupla leitura, no qual notamos o verbo viver, mas também um hipocorístico de Vívian.
O diálogo com as vanguardas pós-modernas aparecem “Em meio ao caos” no qual o eu se põe bem no centro, sendo o mediador de uma imagem espelhar. O jogo de palavras, o aproveitamento do espaço em branco do papel tal como queria Pignatari ganha vida em “Teimosia”. Numa cena pueril, barquinhos de papel se derretem antes de chegar ao mar. A contiguidade da vogal “a” no último verso reporta a uma interjeição de dor, tristeza, lamento. A plurissignificação toma conta do poema “Fito” que pode significar tanto mira, fixar quanto planta. Além do diálogo com a estética concretista; em “10governo”, percebem-se resquícios do Poema Processo que privilegia o símbolo gráfico no lugar de palavras e sílabas. Um poema que remonta a primeira parte do livro pelo seu teor social. Recursos sonoros, como onomatopeias aparecem no poema “Uns e outros”. E o humor no poema “Física quântica”, no qual a poeta mescla ciência com “uma propaganda de Rexona” para resolver o problema do corpo suado, inspirando, respirando e transpirando, ou como o próprio título sugere, para resolver o problema do universo que conspira.
Eis de forma sucinta e poética a lavra de Vívian Brito. Uma lírica produzida em um peito inquieto, sempre a espera do vinho para se embeber de poesia. Versos de fases, como a lua de uma noite vazia que traz você. Mulher sertaneja, tal seu caboclo, de sorriso largo e olhar firme que tece o real do conto com fadas, príncipes, cavaleiros nobres, estrelas espalhadas. Deixai que os versos e reversos de Vívian Brito corram nas veias, pois “a vida corre serena./ Assim seja, eternamente”. Amém.