por Márcio Adriano Moraes
Publicado em 1932, Menino de Engenho inaugura o ciclo da cana-de-açúcar na obra de José Lins do Rego, o qual retrata a decadência do sistema patriarcal dos engenhos nordestinos, marcada pela transição econômica da produção de açúcar para as usinas. Aspectos biográficos se deixam entrever na produção literária do autor como um todo e, neste romance, a vida de um menino criado numa fazenda se torna metonímia para garotos que cresceram da mesma forma, inclusive o próprio autor, o paraibano José Lins do Rego. Utilizando uma linguagem simples, marcada pela oralidade e intimamente ligada ao folclore e às tradições da região, o romancista faz uma reconstrução da cultura, do cotidiano e das transformações sociais do nordeste brasileiro
O romance é uma narrativa memorialística que combina aspectos reais com elementos de ficção, centrando-se nas memórias de Carlinhos, o narrador-protagonista. Além de seu aspecto regionalista, trata-se de uma narrativa de formação, na qual Carlinhos amadurece em meio a conflitos internos, descobertas e desilusões vividas em um ambiente que vai moldando seu caráter.
Com foco narrativo em primeira pessoa, Carlos de Melo, já adulto, revisita suas memórias de infância para retratá-las num tom confessional, conferindo ao enredo um aspecto introspectivo e emocional. Dividido em quarenta capítulos curtos, a narrativa é marcada por um tempo psicológico que prioriza as lembranças e reflexões do narrador, embora eventos pontuais sejam situados cronologicamente no início do século XX. Sem pudor, o protagonista vai retratando ao leitor sua vivência de “moleque solto” nas terras do avô dos quatro aos doze anos de idade, ou seja, desde o trauma inicial da morte da mãe, assassinada pelo pai, até sua partida para o colégio, marcando o fim de sua infância no engenho. Experimentando a liberdade, as brincadeiras e os medos da infância, mas também enfrentando os traumas da violência familiar e a iniciação precoce à sexualidade, a história apresenta a trajetória de Carlinhos, um “menino perdido”.
O avô, José Paulino, representa o poder patriarcal, numa quase herança feudal, do grande senhor de terras, em que “súditos” devem respeito e subordinação. A relação do patrão com os trabalhadores, porém, é marcada pelo paternalismo e pela desigualdade. Enquanto José Paulino imperava no seu engenho Santa Rosa; um vizinho seu, Lula de Holanda, senhor do decadente engenho Santa Fé, teimava em manter a fachada aristocrática, sem conduto prosperar.
O engenho se torna um espaço de pluralidades: de relações familiares, de rivalidades sociais e econômicas, de práticas religiosas tradicionais coexistindo com crendices populares, de trabalhadores livres e de herdeiros de um sistema escravocrata. Sendo o principal espaço, o Santa Rosa, no interior da Paraíba, é detalhadamente descrito como um microcosmo que inclui a casa-grande, a senzala, o eito e os arredores, revelando a estrutura hierárquica e desigual da sociedade rural nordestina.
Além do avô José Paulino, a tia Maria e a velha Sinhazinha são figuras centrais que representam aspectos da tradição, da ternura e da opressão, respectivamente. Outros personagens, como os moleques do engenho, o cangaceiro Antônio Silvino e a inocente prima Lili, ilustram a diversidade de tipos sociais da época. A sexualidade precoce de Carlinhos encontrará, principalmente; em tio Juca, a curiosidade pelas revistas de mulheres nuas, em Luísa, a masturbação, e em Zefa Cajá a primeira relação como homem aos doze anos de idade, contaminando-se com doença do mundo.
Nostalgia e crítica são as guias de leitura de Menino de engenho, um dos principais romances regionalistas da Segunda Geração do Modernismo. Retratando uma realidade que lhe é próxima, José Lins do Rego combina lirismo e crítica social em uma narrativa que transcende a simplicidade aparente de sua linguagem. Por meio de Carlinhos, o autor tece um retrato sensível e vívido de um mundo em transformação, capturando as transições de uma sociedade marcada por desigualdades, mas também por riquezas culturais e afetivas.
É relevante, por fim, destacar os intertextos presentes em Menino de Engenho, e o mais significativo, sem dúvida, é o diálogo com O Ateneu, de Raul Pompeia. No último parágrafo do livro, José Lins do Rego estabelece uma comparação entre Carlos e Sérgio: enquanto Carlos deixa uma juventude repleta de experiências marcantes para dar continuidade aos estudos, Sérgio parte de um ambiente protegido e mimado (o lar familiar) para um universo onde enfrentará vivências inéditas (o colégio Ateneu). Em O Ateneu, a narrativa é marcada por uma busca interna de libertação de uma amargura profunda, conduzida por um tom de caricatura, sarcasmo e impiedade. Já em Menino de Engenho, prevalece uma atmosfera de ternura e profunda humanidade, permeada pela nostalgia do engenho e pela decadência da civilização açucareira. José Lins do Rego se empenha em captar a grandeza e as limitações do ser humano, evocando memórias de um mundo que, mesmo em declínio, o autor não deseja abandonar.