por Márcio Adriano Moraes
É comum, na Literatura, associar a história de um personagem, principalmente o protagonista à história de vida do autor. E é imprescindível, entretanto, dissociar ficção de realidade. Porém, em O Ateneu, de 1888, Raul Pompeia traz a memória de um jovem num Colégio interno, o qual deixou marcas profundas em seu psicológico. O autor frequentou na juventude um colégio semelhante, o Abílio no Rio de Janeiro. Para alguns críticos, então, há referências camufladas ou não da vida de Raul Pompeia em Sérgio.
Publicado no ano da abolição, por um autor republicano e, inclusive defensor de Floriano Peixoto, O Ateneu é um romance inserido cronologicamente no Realismo brasileiro. Classificado como um “romance de formação”, o livro narra as memórias de Sérgio, um jovem que deixa o conforto do lar para ingressar no renomado colégio interno Ateneu, passando por um amadurecimento físico e psicológico. Repleto de críticas sociais e introspecções, o romance transcende o retrato individual para servir como um espelho da sociedade da época.
Combinando características do Realismo com elementos de outras correntes estéticas, Raul Pompeia cria uma obra que, para alguns estudiosos, seria inclassificável dentro de uma escola literária específica. A análise psicológica e as críticas sociais revelam o aspecto realista; enquanto a exploração de instintos e de comportamentos humanos, além do determinismo mesológico, aproximam-no do Naturalismo. Fora isso, há momentos em que o autor flerta com o Impressionismo, por meio de descrições vívidas que valorizam sensações e percepções, e com o Simbolismo, em sua busca por evocar imagens e emoções; além do Expressionismo com distorções caricaturais em descrições, sobretudo de personagens. A linguagem é marcada por rebuscamento, com adjetivação intensa, metáforas elaboradas e figuras de estilo que refletem a erudição do autor.
Composto por doze capítulos, O Ateneu adota uma estrutura que se aproxima, como o próprio narrador afirma, de uma “crônica de saudades”. No entanto, a nostalgia evocada não é condescendente ou idealizadora; pelo contrário, expõe o desencanto do narrador-personagem com seu passado. A narrativa em primeira pessoa permite uma perspectiva íntima e reflexiva, transportando o leitor para os pensamentos e sentimentos de Sérgio, conferindo à obra um tom confessional. Contudo, seu olhar crítico se assemelha a de um observador satírico que não se isenta de críticas ácidas ao internato e, por extensão, à sociedade.
O colégio Ateneu funciona como um microcosmo da sociedade, onde se manifestam valores como vaidade, corrupção, hipocrisia e bajulação. É um ambiente fechado e claustrofóbico, que acentua os conflitos internos e externos do protagonista. O espaço físico, descrito em detalhes minuciosos, reflete a opulência superficial e as contradições morais do internato. O tempo é psicológico, entrelaçando memórias e reflexões, e revela como o passado molda a visão de mundo do narrador adulto. Apesar de a ação ocorrer em um período bem definido (os dois anos que Sérgio passa no internato), a narrativa transcende a linearidade, priorizando as impressões e sentimentos evocados pelas recordações.
Entre vários personagens, destacam-se Sérgio, o protagonista e narrador, representa a transição da infância para a vida adulta, inicialmente ingênuo, vivencia as durezas e contradições do internato, transformando-o em um jovem cético e reflexivo; o Dr. Aristarco, diretor do colégio, simboliza a autoridade e a hipocrisia do sistema educacional da época, combinando autoritarismo e vaidade, em uma caricatura do educador tradicional; Ema, esposa de Aristarco, encarna a dualidade entre maternidade e sensualidade, sua relação ambígua com Sérgio sugere tanto um afeto maternal quanto uma atração erótica, evidenciando os conflitos internos do protagonista; Sanches, Bento Alves e Egbert, colegas de Sérgio que, em diferentes níveis, exploram temas como amizade, homossexualidade e as relações humanas no ambiente opressivo do colégio.
Tematicamente, O Ateneu aborda questões atemporais e universais, como a perda da inocência, o amadurecimento e as hipocrisias da sociedade. A obra expõe de forma crítica a educação formal, que deveria formar o caráter e moralidade, mas é retratada como um instrumento de repressão e ostentação social. Temas como homossexualidade, repressão sexual, violência e desigualdade de poder permeiam a narrativa, oferecendo uma visão crua e provocativa da condição humana.
Mais do que um relato memorialístico, O Ateneu é uma alegoria sobre a complexidade das relações sociais e a falência de instituições que deveriam moldar o futuro. Apesar de ser um romance ficcional, traços autobiográficos de Raul Pompeia se deixam perceber em Sérgio. Assim sendo, o autor conseguiu transformar uma experiência pessoal em uma crítica social de amplo alcance, mesclando realismo e simbolismo em uma sensibilidade estética única. Obra mais conhecida do autor, O Ateneu é, sem dúvida, um livro que desvela um período de travessia de todo o adolescente em busca de sua identidade: a vida escolar. E, alegoricamente, é bem o que o pai disse ao filho no início do enredo: “Vais encontrar o mundo. Coragem para a luta”.