por Márcio Adriano Moraes
Escrivivência! Esta neológica palavra se aplica a escrita da mineira belorizontina Maria da Conceição Evaristo. Suas narrativas possuem insumo em sua vida e nas vidas que a circundam, sobretudo, quando das experiências vividas na favela de BH. Em Olhos d’água, livro de contos, de 2013, Conceição traz histórias de marcas doridas na pele negra. Quinze narrativas sensíveis e denunciativas, as quais revelam a condição de indivíduos marginalizados, especialmente mulheres negras, que vivem em um Brasil marcado pela violência, desigualdade e exclusão. A obra é um retrato da luta pela sobrevivência, da resiliência e da capacidade de amar em meio ao caos. Cada conto apresenta uma personagem singular, mas que se torna uma metonímia social. São, pois, narrativas unidas por um fio condutor: a dor e a força que brotam das experiências de resistência. Apresentemos uma síntese temática de cada conto:
Olhos d’Água: a narrativa que dá título ao livro apresenta uma reflexão íntima e poética sobre memória, ancestralidade e amor materno. A protagonista, tomada por uma inquietação existencial, busca lembrar a cor dos olhos de sua mãe, o que desencadeia um mergulho em suas memórias de infância, marcadas pela luta contra a pobreza e pela força da figura materna. Ao retornar ao seu lugar de origem e reencontrar sua genitora, ela finalmente compreende que os olhos de sua mãe têm a cor de rios e de lágrimas que transcendem o pessoal, alcançando raízes afro-brasileiras e a força e a resistência de mulheres negras.
Ana Davenga: história de uma mulher cujo nome reflete a fusão entre o amor e a violência. Ana, que adota o sobrenome do companheiro como símbolo de entrega e identidade, vive entre o desejo, a dor e a paixão; enquanto Davenga, líder de um grupo criminoso, carrega em si uma mistura de força e vulnerabilidade. A última cena encerra o fatídico destino de uma família ainda em formação, cujo filho no ventre de Ana não chegará a nascer.
Duzu-Querença: narrativa impactante sobre uma mulher que enfrenta a dureza da existência. Duzu, desde a infância, encontra a precariedade e a precocidade de uma vida de menina cujo corpo é visto como de mulher. Ao longo dos anos, vai perdendo os seus sonhos, enfrentando abusos e desafios para criar seus filhos e netos em meio ao caos. Apesar das dores acumuladas, ela se agarra à fantasia para suportar a existência, sobretudo em seus últimos dias, enquanto projeta na neta Querença a esperança de um futuro diferente. Muitos filhos e netos carregam sua herança ancestral, mas é Querença que se liga a avó como no “hífen” do título, para resgatar, na educação, o sonho que se perdeu para Duzu.
Maria: um dos mais sensíveis e revoltantes, cuja protagonista carrega no corpo e na alma as marcas de uma sociedade que marginaliza mulheres negras. A narrativa retrata a dura realidade de uma mãe trabalhadora que enfrenta o peso do preconceito e da violência, injustamente acusada de participar de um assalto, torna-se vítima de um linchamento.
Quantos filhos Natalina teve?: a narrativa explora as múltiplas camadas da maternidade: a entrega, o abandono, a obrigação, o estupro. Ao longo de sua trajetória, Natalina enfrenta gravidezes indesejadas, rejeição, exploração e abuso, mas também descobre, em sua quarta gestação, a possibilidade de reivindicar a autonomia sobre seu corpo e sua vida. Em um momento de superação e resistência, ela decide criar seu filho por conta própria, fruto de uma violência, mas livre de dívidas emocionais ou imposições externas.
Beijo na face: Salinda vive um amor secreto enquanto enfrenta o controle e o abuso de um marido ciumento. A tensão entre a busca por liberdade e o medo de retaliações traduz o peso de relações abusivas. O encontro de um amor entre iguais mostra portas que se abrem, quebrando padrões e rompendo preconceitos, revelando as complexidades das relações afetivas e o poder transformador do amor.
Luamanda: conto que percorre as várias formas de amar experimentadas por Luamanda ao longo de sua vida. Desde os primeiros encontros juvenis até os relacionamentos mais maduros e complexos, Luamanda experimenta o amor em seus aspectos mais diversos: homens, mulheres, jovens e velhos. Sua trajetória desafia convenções, explorando o erotismo e a plenitude em suas relações, além de abordar o envelhecimento e a força feminina.
O cooper de Cida: a narrativa acompanha Cida, uma mulher que vive em um ritmo frenético, tentando preencher cada instante com tarefas e compromissos, como uma forma de escapar da monotonia e do vazio existencial. Durante uma de suas corridas matinais, no entanto, ela é tomada por um momento de pausa e contemplação, quando percebe pela primeira vez a vastidão e a beleza do mar. Essa experiência a desconecta de sua rotina alienante e a leva a refletir sobre o sentido da vida e sobre a fragilidade da existência. Dentro da coletânea, este é um conto que foge de imagens trágicas e traz uma reflexão mais positiva.
Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos: a infância em um cenário de violência urbana. Zaíta, distraída pela busca de uma figurinha perdida, torna-se vítima de um tiroteio. A mãe ordenara que não se afastasse do barraco, mas Zaíta rompe esse limite; assim como Naíta que pegara a figurinha da irmã gêmea, e um dos irmãos que se envolvera na criminalidade. O enredo mostra a fragilidade de crianças na periferia e a forma como a inocência infantil é brutalmente interrompida pela realidade excludente e violenta.
Di Lixão: conto que retrata os últimos instantes de um menino de rua que enfrentou a dureza de uma existência marcada pelo abandono, pela violência e pela indiferença social. Suas memórias misturam rancor e desprezo pela figura materna. Duas dores lhe acometem neste derradeiro momento: um dente dorido e um chute que levou nas partes baixas dado por um companheiro. O pedido de socorro lhe para na garganta. Em posição fetal, Di Lixão encontra seu último traslado no rabecão da polícia. A crueza do relato destaca a desumanização de pessoas marginalizadas e fragilizadas como esse garoto de quinze anos.
Lumbiá: o protagonista é um jovem vendedor de rua que usa de estratégias, como fingir um choro de emoção, para vender flores a casais enamorados. Entre os desafios da vida na pobreza, ele encontra consolo no Natal, especialmente nos presépios que visita, vendo neles um reflexo de sua própria realidade familiar. Queria muito ver o presépio do Casarão Iluminado, mas havia restrições para entrar. Numa noite, furtivamente, consegue se aproximar do objeto de desejo e, ao ver o Deus-menino (Erê) com os braços estendidos parecendo pedir ajuda, Lumbiá o furta e foge pelas ruas, não se atentando para o trânsito. O sinal! O carro! “Amassados, massacrados, quebrados! Deus-menino” e Lumbiá.
Os amores de Kimbá: o enredo narra o triângulo amoroso entre Kimbá, um jovem negro de origem humilde, Beth, uma mulher de classe alta, e Gustavo, um amigo rico que nutre sentimentos homoafetivos pelo protagonista. A narrativa aborda os dilemas emocionais e sociais enfrentadas por Kimbá, que se vê dividido entre os mundos representados por seus amantes, enquanto lida com questões de identidade racial, marginalização e o desejo de aceitação. Porém, o pacto selado pelos três, ao fim do conto, mostra que a morte se torna uma escolha ante problemas cujas soluções parecem distantes demais.
Ei, Ardoca: o protagonista é um homem cuja existência está enraizada à rotina opressiva do trem suburbano, símbolo de sua condição social e emocional. Nascido e criado nos solavancos da linha férrea, Ardoca é um observador das vidas que cruzam os vagões: camelôs, trabalhadores exaustos e cenas de violência. Em um ato de desespero silencioso, ele decide terminar sua vida no trem, carregando consigo o peso de uma existência sufocada pela rotina e pelo abandono. Um conhecido, porém, vendo seu padecimento, retira-o do trem e o coloca no banco da estação, deixando-o morrer sozinho, levando antes os seus pertences.
A gente combinamos de não morrer: é uma narrativa polifônica, em que Dorvi, jovem envolvido em disputas de facções no morro; sua companheira, Bica, e mãe de seu filho; e sua sogra, D. Esterlinda, fissurada em novelas, relatam suas percepções de vida e anseios, num contexto de extrema precariedade social e violência. Em uma favela marcada por tiroteios, mortes e resistência cotidiana, as histórias de cada um se entrelaçam, revelando dores, decepções, reviravoltas, escolhas e também esperança. A promessa de não morrer é quebrada de forma cruenta, um assassinato vindo de mãos outrora amigas.
Ayoluwa, a alegria do nosso povo: narra o renascimento de uma comunidade mergulhada em tristeza e desesperança até o anúncio da gravidez de Bamidele (“esperança” em iourubá). O nascimento de Ayoluwa, cujo nome significa “alegria”, trazida ao mundo pelas mãos da parteira Omolara (“a criança é o meu companheiro” em iorubá), não representa, necessariamente, uma promessa de salvação absoluta, mas inaugura um ciclo de renovação e resiliência. Ayoluwa desperta nos habitantes a força de resistir e reinventar a vida, ainda que as dificuldades persistam. A alegria pelo nascimento de uma criança não é somente pelo novo ser que ganha vida, mas um gesto de resistência ao apagamento cultural, imposto por uma sociedade arraigada pelas marcas coloniais.
Olhos d’Água, portanto, convida leitores a um mergulho nas profundezas da existência humana, especialmente das mulheres negras, cujas histórias atravessam temas como violência, amor, maternidade, exclusão, desejo e resistência. Conceição Evaristo constrói uma literatura de denúncia e celebração, com o lirismo de sua “escrivivência”, dando voz aos marginalizados. Apesar de muitos finais trágicos, a autora busca resgatar a dignidade de personagens que enfrentam as adversidades da vida com coragem. Cada conto, com sua singularidade, contribui para reflexões sobre identidade, ancestralidade e a luta por sobrevivência, reafirmando o poder da memória, da solidariedade e da esperança como formas de resistir (“re-existir”) a vida.