por Márcio Adriano Moraes
Em 1943, Cecília Meireles viaja a Ouro Preto na condição de jornalista durante festejos da Semana Santa. Ao contemplar os locais que, distantes no tempo, foram cenários de um movimento tão importante para a história, sentiu os fantasmas batendo-lhe na porta do peito poético. Mobilizou-se, então, em recuperar o passado, mas não apenas os fatos, mas a emoções que o desencadearam. Dez anos depois, vinha a público o Romanceiro da Inconfidência.
Combinando lirismo e historicidade, a obra transcende a simples reconstituição factual, buscando, nas entrelinhas da história, reflexões humanas, contradições sociais e o anseio por liberdade. Estruturada como um romanceiro, a obra se utiliza de formas populares e tradicionais da poesia épica, mescladas ao lirismo subjetivo, para recontar os eventos, resgatando as vozes marginalizadas e reinterpretando figuras históricas. O termo “romance” usado por Cecília Meireles para nomear as partes do livro difere das narrativas em prosa. Esse gênero poético remete a composições ibéricas, as quais tratavam de episódios tradicionalmente históricos, melancólicos, fantasmagóricos ou sobrenaturais. Trata-se de poemas narrativos breves, originalmente cantados ao som de instrumentos, celebrando as proezas e aventuras de um herói ou de uma nação.
O livro explora amplamente a fugacidade do tempo, a efemeridade da vida e a transitoriedade das riquezas e posições. A autora destaca continuamente o que realmente importa, condenando a covardia dos injustos e a frieza dos confrades do alferes em momentos difíceis, atacando as torpezas do espírito humano. Ao igualar escravos, rainhas, nobres, pobres, ciganas e poetas, Cecília Meireles enfatiza a humanidade de cada um, independentemente de sua posição social.
Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto são destacados como figuras centrais no movimento inconfidente. Porém, Cecília Meireles não os idealiza, problematizando, por exemplo, a morte de Cláudio Manuel da Costa na prisão. Tomás Antônio Gonzaga, famoso por seus versos dedicados a Marília, torna-se símbolo da tensão entre o ideal poético e a realidade política. Maria Doroteia de Seixas, a musa Marília, extrapola a visão passiva e idealizada dos versos árcades, assumindo um papel crítico, mas também de sofrimento. Alvarenga Peixoto, um dos líderes do movimento, tem seu locus amoenus transformado em locus horrendus. Bárbara Heliodora, sua esposa, muitas vezes relegada a um papel coadjuvante na história oficial, ganha destaque como um símbolo de resistência, apesar de suas perdas; demonstrando que as mulheres, mesmo silenciadas na sociedade colonial, carregavam o peso das lutas.
A ambientação predominante, obviamente, é Minas Gerais, mais especificamente as cidades de Vila Rica e Diamantina. Há, porém, referências a espaços africanos, já que esse continente foi destino de presos degredados. Quanto ao tempo, os fatos se concentram no século XVIII, antes da Inconfidência, durante e após (consequências) sua derrocada.
Joaquim José da Silva Xavier, a figura mais emblemática, é retratado com uma intensidade quase messiânica, evocando uma imagem análoga a Jesus Cristo. Sua luta incansável pela liberdade, mesmo diante da certeza do sacrifício, e sua morte na forca ressoam com a crucificação do Filho de Deus. Ambos se tornam símbolos de redenção e sacrifício supremo em nome de um ideal maior. Assim como Jesus, Tiradentes é traído, preso e executado, mas sua morte não extingue seu legado; pelo contrário, transforma-o em um ícone eterno da resistência e da esperança.
Joaquim Silvério dos Reis, em contrapartida, é o oposto, o traidor, em clara analogia a Judas Iscariotes. A traição de Silvério, motivada por ganhos pessoais, reflete a infâmia de Judas, cuja delação de Cristo por trinta moedas de prata é um dos atos mais desprezados da história. Ambos os traidores são condenados não apenas pela história, mas pela memória coletiva que os vê como símbolos de deslealdade e corrupção moral. Porém, se não fossem tais ações traiçoeiras de Judas e Silvério dos Reis não existiria a imagem do Salvador do mundo nem do Mártir da Independência do Brasil, pelo menos, na substância que o são.
Por fim, a obra valoriza a essência humana e a necessidade eterna de sonhar e lutar. O resgate do mártir inconfidente não é meramente para afirmar um herói nacional ou exaltação patriótica; Cecília Meireles destaca o esforço humano na história, nossas esperanças inacabadas e nosso contínuo sonho de liberdade.