por Márcio Adriano Moraes
Lançado em 2006, ainda em flor, é o livro de estreia do baiano José Amarante, natural de Ituaçu. Trata-se de obra composta por quatorze contos curtos, escritos com lirismo e delicadeza, os quais transformam experiências e acontecimentos em reflexões íntimas. O título, grafado em minúscula, bem como os títulos dos contos, aponta para uma viagem ao solo da infância, tempo de “flores” e de efemeridades. Sem precisar de topônimos, as histórias estão ambientadas em cidades interioranas, quase imaginárias, que surgem da memória, criando um tempo que entrelaça presente e passado.
Esses contos registram vivências de um menino que persiste na memória do narrador adulto, explorando temas como a descoberta do sexo, da morte e das dinâmicas familiares, sempre com uma forte conexão com o tempo e o espaço pueril. A narrativa é leve e ágil, marcada pelas cicatrizes que o tempo deixa, tanto na carne quanto no espírito. O autor, José Amarante, também revela seu diálogo intertextual com outros escritores, como Clarice Lispector e Guimarães Rosa, enriquecendo o texto com conexão literária e existencial.
O poema “Bala Perdida”, de Isabela Rebouças, o qual abre o livro, traz reflexões sobre a perda, a saudade e a tentativa de alcançar algo que já não pode ser recuperado. Ele se conecta profundamente com o sentimento que permeia a obra: a nostalgia e a busca pelo menino que ainda vive no homem adulto, mas que já não é o mesmo.
No conto mágoa de flor, o narrador explora a relação entre expectativas e frustrações maternas diante do nascimento de Mandu, um menino que não corresponde ao desejo da mãe, que queria ter tido uma “flor”, ou seja, uma filha. O sonho da flor contrasta com o real nascimento de Mandu. Para o sonho se concretizar, a menina Flor é adotada. Irmanados, então, Mandu e Flor crescem juntos. “Branco e Preta, mas quase como gêmeos. Estranhamente ligados, chegavam a incomodar”. A menina, inicialmente objeto de desejo da mãe, torna-se considerável afeto na vida do menino, que, ao mesmo tempo, identifica-se e se distancia dela. A Flor cresce e já não é mais a “bonequinha” da Mãe. Então, é devolvida de forma abrupta, como se fosse um objeto, substituível. O menino ainda não compreendia as relações sociais dos adultos, não aceitando o desfecho, revelando uma dor silenciosa que lhe marcará para sempre.
Em papel de bala, o narrador-menino se lembra das festas de aniversário de Rosinha. O papel de bala, simples e colorido, preenchia seu mundo infantil e lhe trazia sentimentos de pertencimento e afeto. Enquanto ajudava nas festas de Rosinha, sentia-se parte daquele mundo. Porém, o tempo, as vontades e a vida crescem, e ele passa a ser excluído nos anos seguintes. Resta-lhe apenas a observação à distância e o ritual solitário de guardar os papéis descartados. A repetição desse ato transforma o banal em símbolo de resistência emocional, no qual o menino encontra conforto e significado naquilo que outros desprezam. A infância é frágil e doce, mas nem sempre plena. Detalhes podem se transformar em tesouros para uma criança guardados no baú da memória.
tem razão, Mãe aborda a tensão entre a fé infantil e o desejo de desafiar as crenças maternas. A habilidade da mãe de “adivinhar” os acontecimentos gera fascinação e frustração no menino, que decide colocar à prova esse suposto poder premonitório. O plano de enganar a mãe sobre a morte do mico, seu animal de estimação, é movido por um anseio profundo de provar que ela não pode prever tudo. No entanto, ao tentar desmascará-la, não pôde fugir da fatalidade: “termina de falar, olha para o mico, na mão, morto”. O conto traz uma reflexão, quase transcendente, da inevitabilidade da morte, das sensações premonitórias maternas, além da fragilidade da infância diante das duras lições da vida.
No conto foguetes de vara, dobrados e sonhos acordados, a velha Bibi torna-se símbolo de resistência e apego às tradições, mesmo diante da proximidade da morte. Encarnando uma devoção quase ritualística, Bibi se mantém viva por meio da expectativa das festas do Divino e da Padroeira. Os sons dos foguetes e dobrados a conectam com a vida, apesar de sua fragilidade física. A família se preparando para o inevitável, mas Bibi se recusa a partir no tempo previsto. Ela exige uma despedida grandiosa, com caixão honrado e o acompanhamento das festividades que marcaram sua existência.
Em a fossa, o “narrador-menino” transforma o espaço humilde da casinha e da fossa no quintal em um universo de mistérios e descobertas. Uma galinha, que desaparece, é encontrada, por ele, dentro da fossa. Uma cena cômica se desenvolve, comer ou não uma galinha suja de dejetos? O menino não quis comer, não só pela imagem da galinha, mas por a fossa lhe trazer sentimentos e significados bem peculiares de uma imaginação infantil.
“Eram cinco. E havia o do meio”. Em o filho do meio, o narrador foca nos conflitos emocionais de um menino que ocupa a posição intermediária entre seus irmãos, vivendo à sombra do primogênito e do caçula. A condição de “meio” se traduz em invisibilidade e em uma sensação constante de deslocamento dentro da dinâmica familiar. O menino, no entanto, encontra conforto no olhar protetor do avô e nos pequenos prazeres da infância, como as brincadeiras e as festividades de São João. Sensivelmente, leem-se, neste conto, temas como identidade, isolamento e busca por pertencimento em meio a expectativas familiares, culminando em uma partida inevitável, na qual o menino, agora adulto, sai em busca de um destino incerto, carregando a melancolia de sua infância e a sensação de nunca ter sido completamente visto ou compreendido.
No conto rio seco, o desejo sexual emergente do menino se frustra diante de um desejo que nunca se concretiza. Ele quer sentir o seu primeiro sexo com Fidó, uma lavadeira, mulher da vida. O rio, que deveria ser um local de purificação e alívio, torna-se testemunha de suas frustrações, à medida que a promessa de realização do desejo é constantemente adiada. A mulher, símbolo do desejo inatingível, depois de adiar o momento, ao final usa a desculpa de uma “operação” como barreira; e o menino, preso entre a excitação e a decepção, vive um ciclo de expectativas não realizadas. Eis a vida adulta, amarga e frustrante, em que desejos nem sempre se realizam.
Em a fossa outra vez, após relembrar a cena da galinha, a fossa novamente assume o centro, desta vez como palco de um mistério familiar envolto em culpa e segredos. Um tiro acidental dentro da casa por Felisberto quase vitima Véa Menininha. A polícia entra em ação. A arma teria sido jogada na fossa. O clima de tensão e suspense transforma a fossa em um espaço de tudo o que está escondido e reprimido. A tentativa de recuperar a arma envolve toda a comunidade, quase como um espetáculo público, mas o verdadeiro segredo permanece inalcançável, assim como a arma que nunca é encontrada. A fossa, guardiã de memórias e segredos, permanece intacta em seu silêncio.
No conto nelvira turisco, a personagem Nelvira, uma mulher solitária e temida, encarna a essência da exclusão social em uma cidade pequena, onde os códigos não escritos mantêm o equilíbrio entre o comum e o estranho. Velha e corcunda, vivia isolada, transformada em lenda viva pela imaginação popular, especialmente das crianças que a temem como uma bruxa. Sua calçada intocada, varrida todos os dias, metaforiza sua desconexão com o mundo ao redor, sendo a solidão sua única companheira. Quando Nelvira morre, sua partida é tratada com indiferença pela cidade, e até seu enterro é marcado pela frieza e pela ausência de luto. Quatro homens são obrigados a carregarem seu caixão até o cemitério. “Estranhamente, cidade toda sai na janela, curiosa. Atrás do caixão, silenciosos, mistério nos olhos, gatos em procissão”. Tais animais foram os únicos, verdadeiramente, a velarem por ela, o que reforça a ideia de uma existência marginalizada e sem laços afetivos humanos, mantendo, ao mesmo tempo, o mistério de sua vida até o fim.
a feira revela o drama de uma mulher idosa para manter viva sua esperança e dignidade ante a dureza da vida. Ao preparar-se para a feira, limpando a mesa e arrumando as mercadorias com cuidado, vê-se o desejo de reconectar com o passado, quando havia amor e prosperidade, “como quando na época em que Pai era vivo”. No entanto, a feira, repleta de movimento e ofertas mais práticas, torna-se um cenário de frustração. O fracasso em vender suas peças, como o vestidinho de chita e os lenços, traz o sentimento de inadequação e o descompasso entre o que ela oferece e o que o mundo valoriza. O choro da mãe, testemunhado pelo narrador – “a primeira vez que vi minha mãe chorar” – mostra a decepção e o impacto da frustração em alguém que dedicou tanto esforço a uma esperança desesperançosa.
O conto a passos rápidos retrata uma rígida estrutura social de inimizades herdadas em uma pequena cidade, onde as calçadas são limites simbólicos de alianças e rivalidades. O menino aprende desde cedo a respeitar essas fronteiras invisíveis, mas inevitáveis. A relação entre o menino e a mãe revela como essas rivalidades antigas permeiam o cotidiano familiar, até mesmo nas brincadeiras pelas ruas. No entanto, ao procurar o filho que se escondera por ter quebrado o braço, a mãe é forçada a quebrar a regra implícita e vai até a “calçada proibida” e pergunta a Dona Judite se vira o seu menino. Resposta negativa. O irmão mais velho o encontrou escondido no quintal com medo da mãe por ter quebrado o braço: “como é que ela vai pagar hospital?” O zelo pelo filho leva a mãe a romper uma regra tácita, provando que há muito mais além de relações que superficialmente se estabelecem por conveniências que já nem sequer fazem mais sentido.
a freira seria Irmã Socorro, a qual rompe com expectativas e padrões estabelecidos pela comunidade religiosa de uma pequena cidade. Chegando sem bagagem, com um olhar firme e postura imponente, ela rapidamente se destaca por sua energia e iniciativas, trazendo mudanças visíveis tanto na igreja quanto na vida cotidiana dos moradores. Realizava missas, cuidava de pobres, chegou até fazer reformas, gerando questionamentos quanto a suas verdadeiras intenções. Comprava mercadorias “fiado” e dizia que o dinheiro viria com o bispo que estava para chegar. Muitas expectativas e gastos com a chegada do bispo que não veio. Quem veio foi a Polícia Federal para prendê-la e a nota na TV: “Doida se passa por freira e causa estragos em cidadezinha do interior”. Uma loucura entre aparências e manipulações a qual pode ser tanto salvadora quanto destruidora, dependendo do olhar.
Em para nunca mais ter que roer embira, a dureza das lições de sobrevivência e sacrifício de uma família marcada pela perda e pela escassez. A mãe, austera e determinada, ensina aos filhos a importância de se contentar com o pouco que têm, após a morte do pai. A expressão “roer embira” funciona como um mantra de advertência sobre as dificuldades do futuro, que o menino ainda não entende. A imagem da mãe dividindo igualmente a pequena fatia de fruta para os filhos... mas o menino um dia queria mais biscoito e foi insistindo e insistindo. A mãe pega o pacote e diz “Vai comer uma por uma”. O menino é forçado então a engolir biscoitos até o enjoo. E a frase, para comer com dor: “Vocês um dia vão ter que roer embira”. Uma tensão entre o cuidado e a dureza, o amor e a privação. O menino começa a perceber que o mundo é cheio de “embiras” (obstáculos) para roer, mesmo sem compreender totalmente seu significado.
Por fim, em no monturo, um espaço marginalizado, terreno abandonado e desordenado, torna-se o refúgio dos desejos e desafios do menino. Enquanto o monturo é desprezado pelos adultos, para o menino, ele representa liberdade e criatividade. Ao tentar subir em uma árvore, o menino busca provar para si e para os outros sua capacidade de superação e coragem, mas o medo e o fracasso resultam em um momento de vergonha. Autonomia e medo de errar mostram como a infância é marcada por tentativas, erros e pressão social. A descida da árvore, com a ajuda da mãe, o traz de novo à realidade. A fantasia de vencer o medo logo dá lugar à humilhação e à perda de um espaço de liberdade. O monturo, antes símbolo de aventura, torna-se uma lembrança de fracasso, e o menino abandona tanto o lugar quanto seu desejo de ascensão.
O livro ainda em flor, de José Amarante, portanto, traz reflexões sobre as complicações da infância, das relações familiares e das pequenas, porém marcantes, experiências que moldam a vida. Através de uma escrita sensível, simples, com marcas coloquiais e poética, os contos exploram desafios, medos e descobertas das personagens, especialmente do menino – numa semelhança autobiográfica – sempre em busca de afirmação em um mundo de normas sociais rígidas e expectativas frustradas. Os cenários cotidianos, como o quintal, a feira ou o monturo, são transformados em espaços de reflexão e simbolismo, em que a inocência se confronta com as duras realidades da vida adulta. O autor constrói um universo literário que mistura lirismo, melancolia e toques de humor, criando uma obra que encontra correspondência em muitos leitores, principalmente naqueles que viveram experiências parecidas no interior. Ao captar a fragilidade e a beleza de momentos aparentemente banais, José Amarante lembra que a vida é repleta de significados universais e atemporais.