por Márcio Adriano Moraes
A primeira epopeia da literatura brasileira é o épico Prosopopeia, de Bento Teixeira, publicado em 1601. Influenciada fortemente por Os Lusíadas (1572), de Luís Vaz de Camões, a obra segue o estilo clássico renascentista, utilizando versos decassílabos e o esquema de oitavas rimas. A obra é uma celebração à figura de Jorge de Albuquerque Coelho, donatário da Capitania de Pernambuco, e exalta suas virtudes e feitos enaltecendo-o como um herói digno das tradições épicas. Prosopopeia possui valor histórico como um dos primeiros registros literários do período colonial no Brasil, representando a tentativa de adaptação dos moldes épicos europeus ao contexto da colônia.
Depois de cento e oitenta anos, Santa Rita Durão apresenta seu épico Caramuru também aos moldes camonianos, “porque, como disse em suas Reflexões Prévias e Argumentos, os acontecimentos do Brasil não mereciam menos um poema que os das Índias”. Diferentemente de Bento Teixeira, que foca mais na exaltação de Jorge de Albuquerque Coelho e nos feitos do herói português, com uma representação menos detalhada e explorada da terra brasileira e dos povos indígenas, o Frei constrói uma narrativa que incorpora o indígena como elemento central da formação da identidade brasileira. Em Caramuru, a brasilidade é explorada através da rica descrição da terra brasileira, com suas paisagens exóticas, fauna, flora e, especialmente, pela representação dos indígenas como protagonistas no encontro com o herói português, Diogo Álvares Correia. Durão aborda a interação cultural entre europeus e indígenas, ressaltando tanto a catequização quanto a adaptação dos costumes europeus pelos nativos.
Obviamente, sendo um frei, seu olhar “europeizado” desliza no preconceito ao retratar as práticas culturais e ritualísticas dos indígenas brasileiros. Influenciado pela mentalidade colonizadora e cristã da época, descreve costumes indígenas, como a antropofagia, com um tom de condenação moral e contrários aos valores europeus. Esse ponto de vista reflete a missão civilizadora atribuída aos colonizadores, que viam os indígenas como seres que necessitavam ser salvos e convertidos ao Cristianismo para abandonarem seus costumes “pagãos” e se integrarem à cultura europeia. Assim, Caramuru não apenas narra as aventuras de Diogo, mas também documenta os costumes, as crenças e a vida dos indígenas brasileiros, mostrando-os como “bons selvagens”, que, sem resistências significativas, aceitam a doutrinação e os valores portugueses.
A narrativa é centrada em Diogo Álvares Correia (1475-1557), um náufrago português que, ao chegar às costas do Recôncavo baiano, é capturado por uma tribo de “índios” tupinambás, conhecidos por praticarem a antropofagia. Ao usar sua arma de fogo, Diogo impressiona os indígenas, que passam a considerá-lo uma espécie de divindade, um filho de Tupã, chamando-o de “Caramuru”, palavra que significa “Dragão do Mar”, nome de um certo peixe e, na versão de Santa Rita, “Filho do Trovão”. A partir desse evento, ele assume a tarefa de converter os indígenas ao catolicismo e lhes impor os costumes europeus, em um processo de catequização e civilização, fazendo-os abandonar costumes pagãos, como a antropofagia.
Ele se torna amigo do chefe Gupeva e participa de conflitos entre diferentes grupos indígenas, além de se apaixonar pela bela “índia” Paraguaçu. De acordo com a lenda/história, Caramuru parte com sua amada para a Europa, onde, após ser batizada na corte francesa com o nome de Catarina (em homenagem à sua madrinha, a rainha Catarina de Médici), casam-se, simbolizando a união de dois mundos: o europeu e o indígena.
Ao deixar o litoral brasileiro, acontece uma das cenas mais icônicas do livro: jovens indígenas, apaixonadas pelo “Filho do Trovão”, lançam-se ao mar em desespero, nadando atrás do navio e implorando para que o herói não as abandone. Em determinado momento, enfraquecidas, decidem voltar à terra. No entanto, uma delas, Moema, escolhe a morte em vez de perder o homem branco de vista, sendo então tragada pelas ondas.
Ao retornarem ao Brasil, Paraguaçu, agora chamada Catarina, tem uma visão profética sobre o futuro da nova nação. Ela descreve a Bahia, mencionando os engenhos, fortalezas e igrejas, além de falar sobre a guerra contra os franceses, que contavam com o apoio dos tamoios, e sobre o combate contra os holandeses, culminando na recuperação de Pernambuco e outras batalhas intensas e emocionantes. No final do poema, Diogo e Catarina são honrados com grandes distinções na colônia por decreto real.
O poema é dedicado ao rei D. José I de Portugal e composto por dez cantos de versos decassílabos heroicos, ou seja, com tonicidade na sexta e na décima sílabas, organizados em oitavas, com rimas fixas no esquema: ABABABCC, seguindo o modelo clássico de Os Lusíadas. A obra é, pois, um importante registro histórico e literário do século XVIII, refletindo tanto os ideais do Arcadismo, em sua composição neoclássica, quanto à colonização e à formação da identidade brasileira.