por Márcio Adriano Moraes
Uma poesia sobre indígenas, sentida por uma indígena. O lirismo de Márcia Kambeba não é criação/ficção de poeta, mas uma experiência vívida. Diferentemente de Gonçalves Dias, poeta romântico não indígena, que versou sobre os “índios” no século XIX, a poeta Omágua poetisa de dentro, isto é, uma lírica de experiências vividas.
A obra Ay Kakyri Tama, cuja tradução é Eu moro na cidade foi lançada em 2013. A autora traz de forma ampla uma expressão de resistência cultural, em que a voz poética se entrelaça com a memória ancestral e a realidade contemporânea. Partindo da etnia Omágua/Kambeba, Márcia tangencia temas fundamentais sobre a identidade indígena, a luta pelo reconhecimento de direitos e a preservação de sua cultura, abordando a complexidade de ser indígena vivendo em um ambiente urbano.
Kambeba utiliza a poesia como uma forma de resistência e reafirmação de sua identidade. Sua escrita, envolta em um lirismo singular, convida o leitor a refletir sobre o que significa “morar na cidade” sendo de origem indígena, confrontando a invisibilidade que muitas vezes recai sobre esses povos no espaço urbano. A cidade, que é um dos principais cenários da modernidade, é retratada não como lugar de pertencimento, mas como um espaço de constante luta para preservar raízes e tradições.
Na poesia de Kambeba, percebe-se a dualidade vivida pelos indígenas que migram para os centros urbanos, sem, no entanto, abandonarem seus vínculos com a terra e suas tradições. A autora cria uma poética de resistência, desafiando os estereótipos que relegam os povos indígenas ao passado, demonstrando que eles existem e resistem no presente, seja nas florestas ou nas cidades. A língua nativa se mistura ao português, tornando-se símbolo de uma cultura que resiste à colonização linguística e cultural. A autora também expressa sua indignação com o apagamento histórico dos indígenas, bem como a exploração de suas terras e o descaso governamental para com suas necessidades.
Além da potência poética, o livro Ay Kakyri Tama inclui fotografias que retratam cenas indígenas, ampliando a experiência estética do leitor e conferindo um olhar visual à vida dos povos originários. As imagens complementam a força das palavras, mostrando homens, mulheres e crianças em suas relações com a natureza e com sua cultura.
O livro se destaca na poesia contemporânea justamente por dar voz a uma parcela da população historicamente marginalizada, fazendo da poesia um espaço de denúncia e celebração. Kambeba ocupa um lugar central na literatura indígena atual, unindo tradição e modernidade, e sua obra ressoa com outras produções indígenas contemporâneas, que buscam reescrever a narrativa sobre os povos originários, muitas vezes distorcida ou negligenciada ao longo da história.
Ay Kakyri Tama é, portanto, uma obra que rompe barreiras, ao mesmo tempo em que reconecta o leitor à riqueza e à pluralidade da cultura indígena. Márcia Kambeba nos oferece, por meio de sua poesia e das imagens que a acompanham, uma jornada de resistência, memória e identidade, convidando o leitor a repensar conceitos e estereótipos impostos pela história, como por exemplo a recusa do nominativo “índio”: Não me chama de “índio” porque/ Esse nome nunca me pertenceu./ Nem como apelido quero levar/ Um erro que Colombo cometeu.