Uma propaganda de tevê com crianças felizes, sendo preparadas para um bom futuro. Assistindo a ela está uma pobre mãe de família que enxerga ali uma chance para o filho caçula. Mas a realidade da instituição mostrada na propaganda é bem diferente. E o bom futuro vai aos poucos se transformando numa triste realidade. Até que surge na vida deste menino uma segunda mãe, a qual lhe tira da delinquência e mostra o caminho para construir sua digna história.
Dirigido por Luiz Villaça, O Contador de histórias (2009) é um longa brasileiro que narra momentos da vida de Roberto Carlos Ramos, pedagogo e autor de livros infantis; considerando “um dos dez maiores contadores de histórias do mundo”; eis aí a justificativa para o título do filme. A enredo é narrado em “voz off” pelo próprio Roberto Carlos Ramos, ou seja, somente a voz do narrador é ouvida, sem se apresentar como personagem. Contudo, o protagonista é Roberto que é se mostra logo no início, quando criança, caminhando sobre linhas férreas da cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1978, decidido a suicidar. O leitor, então, toma conhecimento de que se trata de uma narrativa memorialista com tempo e espaço definidos.
Um flashback recua o tempo há uma semana, quando ele teve contato, pela primeira vez, com uma Madame francesa na Febem (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor). Essa senhora é Margherit Duvas que se interessa por ele, considerado “irrecuperável” pela diretora da Fundação. O menino hesita em falar, mas ao perceber o gravador, inventa a história de um assalto para dizer como foi parar na Febem. Está aí a primeira cena da capacidade criativa de Roberto, o que obviamente deixa marcas de encantamento em Margherit. Naquela noite mesma, ele foge, o que era uma prática comum. Sua biografia registra 132 fugas da Instituição.
Já nas ruas de Belo Horizonte, cometendo furtos e constantemente fugindo da polícia, Margherit o encontra e convida para passar uma semana em sua casa. A ingenuidade da francesa é tamanha que não enxerga o perigo que a cerca, já que as crianças, em sua condição de delinquência, tinham de roubar para viver. Já na casa da Madame, Roberto se farta, deixando em evidência a sua ânsia por comida. Porém, ele faz o que foi fazer, roubando-a e fugindo.
Na Febem, Margherit conhece um pouco mais daquele menino incorrigível que lhe infringiu a confiança. Enquanto isso, Roberto sofre uma violência que transformará sua vida. Ele admirava o Cabelinho de Fogo e sua turma, também garotos que tiveram passagem pela Febem. Desejando entrar para a turma, deveria passar por um teste: “ser a mulher dos garotos”. Espancado e humilhado, Roberto decide se matar deitando-se sobre os trilhos do trem; mas o destino lhe deu uma nova chance, pois não era o trilho da vez.
O narrador retoma a cena inicial. Na sequência, Roberto “invade” a casa de Margherit, trancando-se no banheiro. A Madame se assusta, pensa em chamar a polícia, mas vai se acalmando e decide dar uma nova oportunidade àquele “incorrigível”. Começa, nesse instante, uma mudança de vida para Roberto, metaforizada no banho que toma, deixando escorrer pelo ralo da banheira a lama e o sangue de seu corpo. Ganha roupas novas, uma casa, uma segunda mãe, um lar. Margherit conta a sua história para ele; e Roberto conta a sua para ela. Fazem um trato de ensinarem um ao outro a sua língua; ela o ensinaria o francês; e ele, a língua dos meninos de rua. Essa troca de experiências reduz a distância entre o menino da Febem e a pedagoga francesa, abrindo espaço para o afeto e a amizade.
O narrador, através de outro flashback, narra o seu ingresso na Febem. Nesse momento, a denúncia ao sistema é apresentada às claras. Para maior compreensão da crítica do filme, faremos aqui uma breve contextualização. O surgimento de uma instituição de abrigo e correção de crianças e jovens remonta à época do Império. E já naquele tempo, os afrodescendentes eram a maioria. Durante o Regime Militar, foi criada a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), que coordenava as entidades estaduais de proteção a crianças e adolescentes infratores. Porém, por meio de ações políticas, há modificações nos propósitos dessas instituições, entre elas, atender famílias carentes, mendigos, imigrantes, alcóolatras. Como ocorreu em São Paulo, com o surgimento da Secretaria da Promoção Social, bem como da Coordenadoria dos Estabelecimentos Sociais do Estado (CESE), a qual levou a criação da Fundação Paulista de Promoção Social do Menor (Pró-Menor). Em 1976, a Fundação Pró-Menor se torna Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem). Em Belo Horizonte, contudo, a Febem surge ainda na década de 1960 no terreno da antiga Fazenda Barreiro, funcionando com um modelo desumano até a publicação do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente – em 1990. A lembrança dos belo-horizontinos é a de um espaço de falsas promessas, de privação da liberdade, de abusos e de violação de direitos dos menores. O filme mostra isso com falas irônicas do narrador: “não sei por que eu fugia, lá eu tinha tudo: companheirismo, comida de primeira, aula de natação, orientação pedagógica, quarto privativo”. Durante as falas, são mostradas cenas de violência por parte dos internos e dos administradores.
Retomando o presente da narrativa, nessa travessia, pela qual passa Roberto, ele teve de enfrentar aquele que, com a violência, acabou lhe mostrando uma outra rota para a vida, Cabelinho de Fogo. Segurando firme o gravador, instrumento de trabalho de Margherit, Roberto impede que Cabelinho o roube. E mais uma vez é surrado, mas agora sofre no corpo a dor para proteger aquela senhora bondosa. Margherit o acolhe como filho e lhe ensina a ler com a história do Capitão Nemo, personagem de Vinte mil léguas submarinas, de Júlio Verne. A imaginação do garoto flutua, colorindo em sua mente aquela trama encantadora. Contudo, a imaginação lúdica é manchada pelos devaneios do tíner, do cheiro da droga. Margherit sabia do seu desafio de não deixar que ações do passado voltassem àquele jovem do presente. E, para isso, Roberto deveria ver outros mundos, outras realidades, como o mar, o misterioso mar que chega aos olhos do garoto como uma surpresa. Era o mar do capitão Nemo com todo o seu mistério. A frase final do livro de Júlio Verne, lida por Roberto, traz uma comparação metafórica de sua vida: “e, por fim, quem pode dizer que viu de perto as profundezas do abismo, só dois homens, o capitão Nemo e eu”. O abismo enfrentado por Roberto está na superfície da marginalização e do preconceito. Ilustrando isso, ao levá-lo a uma partida de futebol no estádio, o garoto tem medo da polícia e se inferioriza por ser preto. Margherit enaltece a cor dele e o faz olhar no espelho para que enxergasse o homem que ali está, um novo Roberto, não aquele menino sofrido e delinquente da Febem.
É chegado o momento de Margherit voltar para França. A sua pesquisa no Brasil estava terminada, pois sua pesquisa era o Roberto. Ela vai a Febem para dizer a Diretora que uma criança de treze anos, tida como irrecuperável, pode, sim, ser recuperada. E a fala da Diretora é impactante: “seu trabalho foi fazer o papel de mãe... o que se faz aqui é política pública, isso aqui é uma guerra [que] já começou perdida; quando uma mãe chega aqui e entrega o filho, é por que ela já perdeu a guerra para a pobreza; ela espera que a gente faça milagre; a gente até tenta; mas milagre é uma coisa que só acontece de vez em quando”. Na propaganda da Febem, vista pelas famílias pobres como a de Roberto, usa-se o acróstico: “F de Fé, E de Educação, B de bons modos, E de esperança, M de moral”. Todavia, Roberto encontrou Frieza, Estigma, Brutalidade, Enganação, Melancolia. Quem lhe incutiu a fé, a educação, os bons modos, a esperança e a moral foi uma estrangeira, uma pedagoga, uma mulher que acreditou na capacidade transformadora do ser humano através do amor. Um carinho que Roberto custou acreditar, inundando a casa com raiva por pensar ser mais uma vez abandonado, ao saber que Margherit voltaria para a França. No entanto, para sua surpresa, a Madame não lhe repreende, mesmo tendo ele destruído também a sua pesquisa, molhando seu gravador e suas fitas. Não precisaria mais deles, o seu trabalho estava concluído e ultrapassou o mero intento acadêmico. Roberto foi adotado por ela e levado para a França.
O Retorno de Roberto ao Brasil, depois de doze anos, consagra a sua travessia. A sua mãe biológica, em sua humildade, acertou com o filho ao levá-lo para a Febem, ele se tornou um professor. Retorna a instituição que tanto o castigou como um estagiário, ou melhor, como um contador de histórias. Margherit não viveu o bastante para ver o seu filho adotivo se tornar um educador, o qual seguindo seus passos também adotou crianças em situações de marginalização.
O narrador encerra sua história contando a história que tanto lhe encantou a crianças da Febem, Vinte mil léguas submarinas. Nas cenas dos créditos, temos contato com o verdadeiro Roberto Carlos Ramos em uma praça diante de uma ampla plateia contando histórias.
A história de Roberto mostra que é preciso uma intervenção humana no processo de formação do ser. O que fez dele o homem que é, não foi a política da Febem, com todas as suas falhas estruturais, mas o amor de uma mulher. É fato que Margherit ilustra o milagre ao qual a diretora fez referência. Não são todas as crianças que conseguem uma Margherit. Mas está justamente aí a reflexão do filme. Seria possível uma política pública que ofertasse “margherit’s” ou, pelo menos, os propósitos humanos dela na formação dessas crianças? Obviamente que, da década de 1990 para cá, muitas ações foram realizadas, tornando esse processo de socialização de crianças e de jovens vulneráveis mais humanizado.
Uma das cenas mais interessantes do filme é do contador de causos da praça, que, para vender canetas, cria histórias de que elas foram usadas por personalidades como a princesa Isabel e Dom Pedro I. Roberto se surpreende ao ver Margherit cair na conversa do homem, comprando a caneta. E a resposta dela, sem que ele saiba naquele momento, repercutirá em sua vida: “ele contou uma história ótima, ele vendeu foi a história, a caneta veio de brinde”. Inventar histórias, ou seja, a Literatura foi um instrumento que deu a Roberto um alento para continuar e que se tornou neste mundo o seu lugar.
VILLAÇA, Luiz (dir.). O contador de histórias. 2009 (filme). Assistir ao filme