Amanheceu chovendo. Não aquela chuva fina e inspiradora que nos convida a tirar a camisa e caminhar ao léu. Também não era daquelas recheadas de trovoadas e de gotas pesadas. Apenas uma manhã de chuva, nada mais. O sono ainda pedindo pela cama e os corpos desejando o repouso por mais horas. Mas o ônibus espera para a partida, data e hora marcada. De malas nas mãos todos vencem a fatiga e pouco molhados entram no transporte. Os primeiros são privilegiados, marcação de poltronas. Triste daqueles que desejam sentar ao lado de sua preferência, mas no banco já está a bolsa ou a blusa marcando o assento.
Ela se senta no branco de trás. Ele no da frente, solitário e pensativo. O motorista acena para alguém do lado de fora, faz zunir a buzina e arranca o veículo calmamente, como a seguir os compassos da chuva. Em movimento, o ônibus adquire vida, e, dentro de si, estão seus fetos. Há a esperança de que algo nasça, algo se enlace, se prenda como num cordão umbilical. Ele e ela separados por uma poltrona. Se fosse apenas o obstáculo físico, seria fácil, mas há uma resistência interna, uma pergunta que não quer aceitar o sim da resposta. Voltam-se os olhos para os passageiros e os brilhos oculares já consagram a união tão esperada, tão cultivada e tão bem preservada. Ser amigo do ser amado é um ato insano, um masoquismo, um platonismo sem cura.
A voz torce ao ouvido como uma toalha a gotejar. A reação é estagnada, não há raciocínio capaz de acompanhar as batidas cardíacas. Fruto degustado aos poucos em uma campina de membros dados e de olhares trocados. A esperança persiste nesse jogo de sedução, continua almejando a conquista.
Mas o surpreendente acontece após uma parada para restituir as energias e também dispensá-las. Ela vem para a poltrona da frente, e então o peito em taquicardia não disfarça a satisfação. O suor escorre pelos braços e pernas, vergonha enganada. E o diálogo se inicia por palavras simples, carnudas e descontraídas, palavras contraídas, palavras traídas de tão sinceras, de tão verdadeiras... Com a chuva lá fora, cá dentro o cobertor no colo se enrosca, entrelaça os dois corpos, agora, juntos, lado a lado, poltrona sem espaço.
Não foi preciso ir para debaixo do edredom, não foi necessário esconder, apesar de o flagra estar muito presente; céu negro, sem lua, corredores sem luzes. Próximos os lábios, mas ainda não tocados. O primeiro beijo deve ser como a morte, enigma. “Bom é morrer de amor e continuar vivendo”, Mário. E naquele jogo de toque e não toque, os lábios começam a se umedecer, a música ouvida é não sonora, mas pulsante no peito.
Uma luz forte ofusca a visão do motorista. Passado algum tempo, ele está junto a ela, abraçados como desejavam há muito. Os lábios não se tocaram por completo, o primeiro beijo foi adiado. Apenas um abraço quente. O coração já não pulsa, e a música silenciosa se transforma em um silêncio sem melodia. Ficam calados. A chuva continua serena do lado de fora, mas também do lado de dentro. “Bom é viver de amor e continuar morrendo”, Márcio...
In: Ler-se(r), 2016, p. 83.