As grades se fecham. O sonho termina naquele instante, naquele breve instante do correr das roldanas do portão. As lágrimas escorrem pelo rosto, os cabelos cingidos de suor tornam-se lenços. O rosto voltado para todo um ano de preparação, de dedicação perdida por causa de dois minutos. Apenas dois minutos, nada mais que dois minutos. E ali, parada rente ao portão de grades fechadas, ouve o fiscal dizer: “sinto muito!” Sentir? Aquilo não era sentir. Nas mãos, duas canetas, um lápis; e, nos bolsos, um apontador, uma borracha, a carteira de identidade e o cartão de inscrição. Mãos e bolsos inúteis. No peito, uma coisa indescritível, não uma dor, uma coisa, realmente uma coisa que não se pode nomear, por não haver sentido, e não há substantivos suficientes. Ao voltar o rosto, um olhar.
Encarando-a intensamente um homem com um microfone na mão já lhe perguntando o nome. O nome? Naquele momento de derrota inacreditável querem saber o seu nome?! O seu desejo era ver, na lista do painel dos aprovados, o seu nome numa excelente colocação, abaixo do curso escolhido. O seu nome numa lista de chamada. Seu nome sendo declamado no fim do curso, pela boca de um mestre de cerimônia, ante um reitor a lhe esperar com um canudo nas mãos. Naquele instante não era ninguém. Não poderia ser ninguém. De que lhe serviria um nome agora? Para ser chamada de atrasada, de inconsequente, de mentecapta, lesa, pacóvia, asna!
O homem com o microfone na mão insiste, ela não responde. Sobre ela uma luz a lhe ofuscar os olhos sensíveis, vermelhos de lágrimas. Uma câmera a registrar aquele momento tão desgraçado em sua vida. Nos lábios do cinegrafista, um sorriso desdenhoso, sarcástico, de alegria? de pena? Um sorriso de um monstro. A fita gira na câmera, e ela não sabe o que dizer, apesar das perguntas do homem do microfone: “qual a sensação de perder a hora e não poder mais fazer as provas?” “por que você chegou atrasada?” “você sabia que eles não deixam entrar após o sinal?” “a seleção dos candidatos começa já neste instante, os atrasados são desclassificados!” “por favor, uma palavra?”
Na sua cabeça de derrotada, muitas palavras, muitas frases, algumas prontas, uma vontade de mandar o homem do microfone e seu amigo com a câmera tomarem algo em algum lugar. Qual a sensação de perder? Uma carreira que não escolheria para si, sem dúvida, seria essa de fazer perguntas de pouca inteligência, perguntas cujas respostas são óbvias. Qual a sensação de perder? Pergunte ao vitorioso, talvez ele diga algo inovador. Por que chegou atrasada? Poderia dizer que mora afastada da cidade. A sua carona, fatalmente, furou o pneu no meio do caminho. O desespero da hora que anda regularmente, mas que nesses instantes parece voar. O polegar ao vento à espera de uma nova carona, pois o estepe também estava furado. Uma alma caridosa dá-lhe a condução, não até o destino esperado, mas parando em um lugar de onde a caminhada não seria de tanto prolongada. A hora seria suficiente, se não fosse o pisar de mal-jeito, fazendo-a torcer o pé. O pé dolorido! A dor física desaparecera naquele momento, não se lembrava que caminhara devagar pisando cuidadosamente para não ferir mais o pé. Não lembrava qual deles estava machucado, se o direito ou o esquerdo. A dor física já não importava. Diria isso ao homem do microfone? De que serviria se as grades não seriam abertas!
Esquecendo-se do pé machucado, desce a rampa que conduzia a entrada do prédio, tentando disfarçar o ferimento. Por que isso? Por que esse martírio? O homem do microfone e o rapaz da câmera a acompanham insistentes. Ela pensa em dizer, mas não diz. Sabe que está sendo filmada, mas de que adiantaria seus conhecimentos naquele momento. Não poderia pô-los à prova. Gostaria, sim, de responder às questões de biologia, química, português, matemática; gostaria, sim, de responder às questões para as quais se tinha preparado. Mas não lhe seria possível. Acertaria todas como acertou nos exames preliminares, nos simulados que fez. O orgulho da mãe e do pai.
A cada passo, olhares de tristeza e de gozo a circundam. Um garoto com uma blusa de um curso preparatório faz piada. Ela escuta, não é surda, mas prefere não dizer nada. Qualquer flecha que venha a feri-la será mais uma seta atirada no rombo aberto no peito. Soluça, chora alto. Uma mulher se aproxima para consolá-la. Uma amiga? uma professora desses cursinhos? ou apenas uma desconhecida! A mulher severamente aparta o homem do microfone e seu amigo com a câmera, como uma leoa a proteger sua cria. “A alegria de vocês é a desgraça dos outros!”. Disse, como num jargão surrado. Os homens se afastam, comentando a boa matéria.
A mulher diz algumas palavras, ela não diz nada. Levanta, quase sem notar ninguém e caminha com seu pé ferido para qualquer lugar. O que diria a seus pais que investiram tanto em sua preparação? Atrasada! Um adjetivo, um particípio, um substantivo? Já não sabia a classificação morfológica de sua espécie. Para próximo a uma ponte, pensa em pular. Mas isso não retrocederia as horas. O olhar vago fitando o rio que a chamava. Pula.
Uma dor súbita no peito, acorda ofegante e suada. Olha para o relógio, ainda é madrugada. Foi o pesadelo. Sua mente cansada, seus olhos pingam lágrimas e um choro estridente rompe o quarto. A mãe acorda, vai até o quarto e encontra a filha em prantos. A mãe não sabe o que fazer, “novamente o pesadelo”. Abraça a filha, beija-a na testa. Naquela testa que guarda adormecidos tantos conhecimentos. Levanta-a da cama e a ajuda a conduzi-la até o banheiro. De pé, a filha olha para o seu pé machucado e diz a si mesma: “atrasada!”
In: Ler-se(r), 2016, p. 54. Adquira o livro: Clique aqui!