Eu é uma obra expressionista, composta dentro da mágoa, dentro da dor, como se tivesse sido edificada em um leito de hospital ou num cemitério, por um coração ultrassensível, aflito, melancólico, inconformado, frustrado. Vislumbramos reflexões existenciais constantes, de teor confessional. O título já sugere um autorretrato, um egocentrismo, uma autopsicologia. Sobre o poeta e sua veia simbolista, comenta Nejar,
Criava escuridão, signos negros, vislumbrava pessimismo ou desespero em tudo, influenciado pelos livros vinculados à evolução, transformismo e determinismo. E era, como se fora, irmão mais moço de Baudelaire, não com a inteligência das flores do mal, porém com as flores do mal na inteligência (NEJAR, 2011, p. 235).
O poema de abertura do livro Eu é “Monólogo de uma sombra”, o qual apresenta o plano poético de Augusto dos Anjos. É um longo poema em que o eu se apresenta como uma Sombra, sendo a voz de todo o poema, tirante as três últimas estrofes, declarando suas impressões. Percebemos, portanto, o lócus da produção poética, dentro da sombra, região escura, isenta de luz. Colocando em discussão “mundo” e “sujeito” pela sua diferenciação, o eu é formado por uma “simbiose” da qual decorrem “A saúde das forças subterrâneas/ E a morbidez dos seres ilusórios!”, trazendo em si “A solidariedade subjetiva/ De todas as espécies sofredoras”.[1]
A visão do poeta é crítica, pois ele se coloca na posição de um ente que paira “acima dos mundanos tectos”, como um ser superior. O repúdio à humanidade e proximidade com os seres inferiores, a podridão, a filosofia existencial que aparecem em todo o Eu é anunciado neste quinteto: “Mostro meu nojo à Natureza Humana./ A podridão me serve de Evangelho.../ Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques/ E o animal inferior que urra nos bosques/ É com certeza meu irmão mais velho!”. Antecipa a morte, pois “o próprio túmulo olha”, aceita sua “vocação para a Desgraça”. Sua condição de ser pensante é, aqui no poema, o “mineiro doido das origens/ Que se chama Filósofo Moderno”, quebrando normas e percebendo que “todas as cousas se reduzem” no “horror dessa mecânica nefasta”. Para Augusto, o Homem é apenas clavículas, abdômen, coração, boca, uma “Engrenagem de vísceras vulgares” de “apodrecimentos musculares”, em que “os vermes assassinos” brincam “Como as cadelas”. Dessa “trágica festa”, “A bacteriologia inventariante:/ Toma conta do corpo que apodrece”, “Vendo as larvas malignas que se embrulham/ No cadáver malsão, fazendo um s”.
Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda as rochas rígidas, torna água
Todo o fogo telúrico profundo
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À condição de uma planície alegre,
A aspereza orográfica do mundo!
A arte é vista como o abrandamento da mágoa humana, sem, contudo, desintegrar os obstáculos mundanos. Pelo contrário, mostra de forma mais límpida as feridas. Eis a poesia de Augusto dos Anjos que, por ser sincera, choca, propondo uma análise muito mais ampla e significativa da vida. Nas três últimas estrofes, o poeta assume a voz do poema afirmando ser o monólogo da Sombra “a elegia panteística do Universo”. Para Souza (2009), Augusto dos Anjos
Embora tenha uma forma carcomida e padeça no mundo como todos os outros seres humanos, em seu ser – e não no de nenhum outro – é traçada a estrutura de um mundo superior. Ele é, indiscutivelmente, um ser diferente. E tudo isso nos leva a divisar uma espécie de dicotomia – entre essa natureza material, podre e perecível, provinda do mundo sensível, e a natureza transcendental e ideal, a qual abriga em si as engrenagens de algo muito além do mundo em que este eu lírico vive (SOUZA, 2009, p. 32).
Nos versos desse poema e em outros, sobretudo, os mais longos, como “As cimas do destino”, “Os doentes”, “Noite de um visionário”, “A ilha de Cipango”, “Poema Negro”, “Queixas noturnas” e “Insônia”, a poesia assume uma maior abstração, numa transição entre a veia simbolista e a científica do poeta. Pela limitação de espaço, refletiremos um pouco apenas sobre “As cimas do destino” e “Os doentes”.
Há, em “As cismas do destino”, o que Helena (1984, p. 24) chamou de “enfoque caleidoscópico da paisagem”. O eu passeia por dentro e por fora de si. O cenário horrendo é a causa de suas reflexões e melancolia. Nesse poema, o seu olhar sai de si e foca-se no outro ou na decadência ao seu redor. O ambiente é Recife. O eu passeia assombrado com sua sombra magra. Pensa no destino com medo. Elementos urbanos aparecem: calçamento, ponte, edifícios; atrelados a animais: rinocerontes, cães famintos. O aspecto da cidade é feroz como se “uma besta solta/ soltasse o berro da animalidade”. Com um olhar naturalista, observa a promiscuidade, o amor humano que o poeta reduziu “a cega e torpe luta de células, cujo fim não é senão criar um projeto de cadáver” (BOSI, 2006, p. 290).
Este texto é um recorte do nosso artigo: O "Eu" e o Outro: tensões e viagens em Augusto dos Anjos. Leia o texto completo: Clique aqui!
[1] Para maior fluência do texto e pelo excesso de citações dos versos de Augusto dos Anjos, abstemo-nos de mencionar todas as páginas. Esclarecemos, porém, que os três poemas aqui analisados encontram-se em AUGUSTO, 2010; “Monólogo de uma sombra” da página 31 a 37; “As cismas do destino”, da página 43 a 57; “Os doentes”, da página 65 a 80.