Crônica selecionada para a 17ª edição da Revista LiteraLivre 2019
Cidade: Jacareí/SP
ISSN: 2595-363X
Atenção, meninos! Para a próxima aula, vocês deverão fazer uma redação dissertativa sobre o tema... Beeeeemmmmm... e cadeiras se atrapalham, carteiras se empurram, a porta se torna estreita, e “pernas pra que te quero”... assustado, o professor se encolhe no canto, rente ao quadro: “o que foi... o que foi, gente,... o que tá acontecendo?” “É feijão, professor, é feijão...”
Faz tanto tempo...
Lembro-me da primeira vez que minha mãe me deixou, sozinho, na porta do Rabicó, um jardim de infância do bairro vizinho. Eu não queria ficar. Acredito que toda criança não queira ficar, pelo menos, de imediato. Aí ela teve de conversar comigo. A diretora me chamou, e eu conheci a minha primeira tia. Ela era tão bonita. Todas as tias do jardim de infância devem ser bonitas. Fiquei. Os outros dias se seguiram, comigo ficando. Conheci os coleguinhas e as coleguinhas. E, naquele universo infantil, já senti meus primeiros conflitos, qual delas seria minha namoradinha? Pensei que me casaria com a tia, muitos queriam se casar com ela, ainda que ela fosse casada. Não entendíamos isso. E coloríamos, e escrevíamos, e líamos, e brincávamos... ah, o escorregador... “não me deixa cair...” “não, não deixarei...” e segurava a mão dela como um herói... e merendávamos... Levávamos a nossa merenda. Era mágico quando o sinal tocava e sentávamos todos juntos e abríamos as merendeiras. Eu tinha uma do Rambo... Às vezes, trocávamos as guloseimas, os lanches, as frutas e até as bebidas, suco, leite com Toddy...
Depois, a vida nos reserva surpresas e, quando não nos damos conta, crescemos. Tive outras tias, mas nenhuma tão bela quanto a que me apresentou o bê-á-bá. Parei de levar minha merendeira e passei a comer a merenda da escola. Gostava quando era mingau. Tinha um arroz estranho que também era bom. Do feijão, eu não gostava, pois ele vinha amassado, tipo tutu. Depois, deixei o Rabicó, que já tinha mudado de nome, e fui para, a escolinha do meu bairro, fiz uma rápida passagem pelo Helena, depois voltei à escolinha que recebera o nome de Dilma Quadros. E continuei comendo a merenda da escola. Às vezes, levávamos ovos para as tias da cantina fazerem farofa. Não havia pratos, comíamos em copos de plástico que nós mesmos doávamos no início do ano letivo. Aí, comecei a gostar do feijão, que já vinha em caroços e com farinha. Tinha o arroz-doce, mas não compreendia por que não faziam como o da minha mãe, tão gostoso. Depois, fui cursar o ensino médio no centro da cidade, num colégio particular, e a merenda acabou. Tínhamos que comprar nosso próprio lanche na cantina. Acabou o feijão, acabou o arroz-doce, acabou o mingau... era refrigerante, salgados, guloseimas... Do ensino médio para a graduação na Universidade e assim continuou, sem merendeiras e sem merendas...
O professor saiu da sala e foi para o seu intervalo. Na sala dos professores, o feijão aguardava. Por incrível que pareça também tinha fila para se servir. Quando chegou sua vez, ele colocou algumas colheres em seu prato e comeu sua merenda. Não só entendeu os alunos, como também se mergulhou naquele seu tempo de recreação, perdido na memória. Aquele feijão tão disputado era mais que um alimento. Era um gosto de saudade tão boa. No pátio, os alunos riam e se fartavam de uma boa merenda. É sabido que não é assim para todos. Há escolas em que copos d’águas saciam mais que sedes.
E assim, o feijão reina plenamente. Não há suco e bolacha doce, achocolatado, iogurte, vitamina de banana, arroz com molho de salsicha, que supere o feijão. Pode, sim, haver outras preferências, mas o único a disparar carreiras, sem dúvida, é o feijão. Hoje é feijão! Hoje é feijão!
In: Ler-se(r), p. 63. Adquira o livro: Clique Aqui!