Quando a Morte conta uma história,
você deve parar para “ver”.
O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein escreveu em seu Tratado lógico, “A morte não é um evento da vida. A morte não se vive” (WITTGENSTEIN, 1993, p. 277). Sendo assim, não há como morte e vida estarem juntas. A existência de uma anula a outra.
Todavia, de forma magistralmente poética, o escritor australiano Markus Zusak nos brinda com sua obra A menina que roubava livros (2006), na qual a morte ganha “vida” para nos narrar uma história. Em 2013, o diretor Brian Percival adapta o romance para o cinema, ampliando ainda mais a história da pequena Liesel Meminger, interpretada por Sophie Nélisse. E é sobre o filme que discorreremos neste estudo.
O enredo segue um tempo marcadamente cronológico. A primeira data a aparecer no filme é fevereiro de 1938, na iminência da Segunda Grande Guerra Mundial. Marca o início da estada de Liesel na Alemanha nazista. O mesmo ano se repete, agora em 9 de novembro para ilustrar a “Noite dos Cristais” (Kristallnacht ou Reichspogromnacht). Noite em que comércios, residências e sinagogas de judeus foram invadidos e destruídos pelo exército nazista. A data seguinte é abril de 1939, dia do aniversário do Führer, logo se subtende tratar-se do dia 20. A próxima data é dezembro de 1941, ano em que Hitler se prepara para invadir Moscou, e na casa dos Hubermann comemora-se o Natal. O ano seguinte, 1942, traz o mês de novembro, marcado por bombardeios. A última data indicada no filme é 1945, quando tropas americanas ocupam a Alemanha. Depois se passam muitos anos, não aparece a data, apenas estas palavras da Morte: “Quando finalmente fui buscar Liesel, senti um prazer egoísta de saber que ela vivera seus 90 anos sabiamente”.
Quanto ao espaço, todo o enredo ocorre na Alemanha nazista. A cidade não é revelada no filme, apenas o nome da rua: Paraíso. Em uma cena, porém, na Estação de Trem, no instante da partida de Hans para guerra, o espectador atento lerá um letreiro entre bandeiras nazistas com o nome: Molching.
A primeira imagem do filme é um céu repleto de nuvens que vai se abrindo até que surge um trem no qual esta Liesel Meminger. Ouve-se a voz do narrador que se apresenta ao espectador. Mesmo não dizendo seu nome, fica perceptível que se trata da Morte. Porém, sua voz não é cavernosa, mas aveludada, distante do imaginário popular de sua figura.
“Em termos mais simples, a pergunta sobre quem ou o que causou a Segunda Guerra Mundial pode ser respondida em duas palavras: “Adolf Hitler” (HOBSBAWN, 1995, p. 43).
Esse ensinamento do historiador Eric Hobsbawm, o qual se encontra em seu livro Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991 pode ser comprovado no filme A menina que roubava livros. Várias são as cenas em que a ideologia de Hitler e mesmo sua figura aparecem, ou em forma de ícones, como a bandeira nazista, ou em forma de referências como a queima dos livros no dia de seu aniversário.
Atribuída ao filósofo Voltaire, a frase “a pena é mais forte que a espada” encaixa-se perfeitamente no filme A menina que roubava livros. Na narrativa, o espectador está se deparando o tempo todo com a “espada” (guerra/morte) e a pena (palavra/livro).
Liesel teve o seu primeiro contato com as palavras escritas com a leitura do Manual do coveiro. É extremamente simbólico este livro no filme. O seu primeiro furto lhe trará o conhecimento do ofício funerário. Um livro técnico que lerá com a ajuda de Hans. Após o término da leitura, Liesel se encontra apta a dominar os ritos mortuários. A menina, então, conhecia bem sobre ela, a Morte. Assim como a Morte se interessou por Liesel, a menina, sem ter consciência, acabou sendo assombrada pela presença da “cova” ao longo de sua vida. E de forma poeticamente enigmática, Liesel é a última personagem do filme a morrer. Como se tivesse a obrigação de enterrar todos aqueles que ela amou para depois se entregar ao seu admirador transcendental, que lhe acompanhara com grande instigação, a Morte.
A Segunda Guerra Mundial foi um dos eventos mais tristes da história da humanidade. Ainda que se tente apagar os acontecimentos ou amenizar as dores causadas, é impossível desmanchar as suas consequências, tanto na vida individual de pessoas, quanto para as nações de todo o mundo.
Fugindo de um relato estritamente histórico, o filme A menina que roubava livros descreve a Guerra a partir do olhar de uma personagem, marcada por, pelo menos, quatro estigmas sociais: criança, mulher, órfã, filha de comunista. A história vista de baixo proporciona ao espectador uma nova visão dos acontecimentos. Revolucionando ainda mais a visão da história, o narrador assume a identidade do ser que mais foi alimentado pela Guerra, a Morte. E diferentemente do que se possa imaginar, a Morte não nos conta uma histórica com sarcasmo nem com irrisão, mas de forma, surpreendentemente, mas humana que os próprios humanos. É como se não desejasse as almas que recolheu tão prematuramente. A Morte não tem pressa nenhuma, pois por mais que delongue, eis um pequeno fato: você vai morrer.
A menina que roubava livros furta-nos e nos transpõe para um fato triste da história humana. Vivenciamos com a pequena Liesel a sensação de medo e de impotência diante de um sistema totalitarista e ditatorial. O refúgio está nas palavras que alimentamos com as pessoas que amamos e com os livros que lemos.
Hans nos ensina que “nada é mais importante do que a palavra de uma pessoa”. E Max nos lembra que “as palavras são vidas”.
Ali, na Rua Paraíso, durante a II Guerra, Liesel tem sua vida transformada pela Literatura. Sua felicidade clandestina lhe traz maturidade. O mundo que ela conhecia vai sendo suplantado por um mundo egoísta. Porém, o alento está no mundo paralelo que ele cria com suas palavras consigo mesma, com Max, com Hans, com Rosa, com Rudy. As histórias reais e ficcionais lhe acompanham, deixando a menina leitora para se transformar na mulher escritora.
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