Filmagens urbanas de uma câmera afiada: uma leitura de Passaporte de Fernando Bonassi
“mundos inteiros podem mudar em pouco mais de duas horas de viagem”.
(021 expresso noturno 483)
Cento e trinta e sete painéis compõem a obra Passaporte: relatos de viagens (2001), de Fernando Bonassi. A alusão plástica aos minicontos não é arbitrária. Estamos diante de um escritor que nos apresenta retratos de uma sociedade contemporânea. Fragmentos de vida urbana tecidos com tinta áspera. Leituras críticas de fatos que merecem ser perpetuados.
A influência do cinema está presente na escrita desse autor. Seu texto curto aproxima-se de um roteiro cinematográfico. Ao ler seus textos, o leitor tem a impressão de estar diante de várias cenas que são sobrepostas umas às outras. Disso, percebe-se uma filiação à técnica cubista. São fragmentos que se justapõe um ao lado do outro, como as cores puras dos impressionistas dissociadas na tela e que devem ser fundidas no globo ocular do espectador. Planos narrativos diversos são montados em ritmo acelerado.
Bonassi pertence a geração de 1990 e, como tal, é assinalado pela visualidade e experimentações literárias. A problemática urbana é o ponto de convergência dos escritores desse período. O escritor busca o insumo de sua produção na agitação da cidade, seja através da vivência, seja através dos veículos de comunicação: televisão, jornais, livros, internet; ou a partir do olhar intertextual com outras artes: pintura, teatro, cinema.
No Brasil, a literatura dos anos 90 mostra esse esforço de superação da crise representativa e da perda de referencialidade que se acentuou a partir da “virada linguística”, ao inaugurar o chamado momento pós-moderno. Novas experiências na narrativa podem ser interpretadas como uma procura estética e literária de uma expressão da realidade mais adequada ao momento histórico e cultural desse final de século. A popularidade de formas curtas como os minicontos de Fernando Bonassi constrói uma nova ponte entre a ficção e a crônica, cuja eficiência estética reside no “instantâneo” de uma vivência concreta que, nesta forma ficcionada, ganha universalidade (SCHOLLAMMER, 2002, p. 79).
Considerando que atualmente a vida transformou-se em um motor que deve funcionar incessantemente sem parar, os textos de Bonassi caem como lubrificantes para essas máquinas. O homem da contemporaneidade, lamentavelmente, está condenado ao tempo. A escrita enxuta de Bonassi serve como lenitivo dessa vida de tropeços. Parar para ler, nem sempre é tarefa fácil para boa parte dos brasileiros. Parar para ler textos literários é mais desafiador ainda, já que a prioridade são as leituras informativas ou técnicas da área de atuação profissional. As mininarrativas de Passaporte preenchem perfeitamente o curto espaço que há para a fruição literária. Os seus textos não só aguçam a criticidade dos leitores diante de acontecimentos da vida, mas também lhes proporcioan a informação denunciativa da realidade. [...]
Narrativas cortantes como uma lâmina de gilete, capazes de deixar nos leitores cicatrizes, os minicontos de Fernando Bonassi não foram escritos para acalentar, mas para causar.
Como se estivesse com uma câmera fotográfica nos olhos, cada mini-história é um click, isto é, um flash. Seus textos curtos são como recortes de um filme maior. A tragédia urbana nos é apresentada de forma fragmentada. O leitor, então, vai construindo o cenário global a partir de suas impressões. [...]
Seus textos são verdadeiras poéticas do olhar. Um convite para encontrar no outro o espelho social do qual fazemos parte. Uma experiência coletiva, a sinergia de uma multidão, porém, marcada pela solidão, já que a escrita literária é sempre um ato isolado, isto é, o autor e suas palavras. Depois, carimbadas em seu Passaporte, Fernando Bonassi compartilha suas idas e vindas por mundos reais e imaginados. Viagens marcadas por roteiros geográficos e humanos, escritos com uma tinta que não sai facilmente da memória.
Leia o estudo completo em “Passaportes: viagens guiadas por Lygia Fagundes Telles e Fernando Bonassi”: Clique aqui!