“A alma do louco não é louca”.
(Michel Foucault, História da loucra, 1961)
“Lá”, lugar distante, em outra região, tão longe da compreensão humana... Nhinhinha veio para o “cá”, sem, contudo, deixar de ser de “lá”. “Lá” é onde queríamos estar ou, pelo menos, saber como é, pois sempre o imaginamos maravilhoso. A altura perfeita, no que tange à música. Todos os instrumentos são afinados através da nota lá, dita diapasão, ponto de convergência melódica. Assim, pudéssemos nós, instrumentos humanos, chegar um dia a essa afinidade. Então, não teríamos mais medo de lá, nem desejo, estaríamos prontos para experimentar a verdadeira poesia da vida.
Narrado em primeira pessoa, por um narrador-testemunha, o qual assume caracteres de terceira, o conto “A menina de lá” alude ao imaginário mítico e místico, ao universo da criança e do adulto, a percepção do poder da linguagem, a loucura/santidade e a razão/humanidade. O autor-narrador, assim o definiremos pela proximidade do criador com sua criatura, relata-nos a rápida experiência que teve com Maria, mais conhecida por Nhinhinha. Uma criança que incompreendida pelos seus, parece ter encontrado no narrador alguém com quem pudesse conversar e ser, até certo ponto, compreendida. Talvez seja por isso, pela sensibilidade e/ou paciência que o narrador tinha por ela, que ele afirmará: “Nhinhinha gostava de mim”.
Nhinhinha, nome diminutivo, carrega o carinho, a afetividade dentro de si. De forma mística, marcado por três “nhs”, como uma trindade. Um apelido que denota pequenez, sem importância, e que, de certo modo, vai de encontro com o seu nome de batismo. Em hebraico, Maria significa “senhora”, e é tradicionalmente associado à mãe de Jesus Cristo, espelho de Deus na Terra, portanto, a mãe do Criador. Maria simboliza a ponte entre a terra e o céu, e entre o céu e a terra; por isso encontra lugar especial dentro do Rito Católico. Temos, assim, uma personagem que assume a identidade, no evangelho de Lucas, de “a serva do Senhor” (Lc. 1,38).
A menina “com seus nem quatro anos, não incomodava ninguém”, vivia introspectiva, preservada em seu mundo. Seu físico não era belo. O neológico “cabeçudota” a aproxima mais de um Quasímodo que de uma Bela dos contos infantis. Seus enormes olhos nos faz lembrar o adágio mesopotâmico: “os olhos são a janela da alma”. Seu olhar, portanto, não era para esse mundo. Seus olhos refletiam, pois, a sua alma ilibada, genuína; alma que não compreendemos por ser uma compreensão ininteligível do universo do “lá”.
Sua morada ficava atrás da Serra do Mim, lugar conhecido como Temor-de-Deus. Esse espaço é muito simbólico. O “Mim” traz a ideia de íntimo, pronome oblíquo de primeira pessoa, portanto, o espaço do “eu”. Como se dissesse que a pequena Nhinhinha vivera no “mim” do autor-narrador. É fato que boa parte das estórias de Guimarães Rosa se funde a sua vida. Em sua biografia, lemos um menino que gostava de ficar sozinho, entretido no quarto, em seu mundo, imaginando estórias, personagens, poemas. Logo, a semelhança entre a protagonista do conto com a vivência infantil de Rosa não é mera coincidência. O “Mim” também lembra “mimo”, carinho, o que o autor-narrador sentirá por essa criança, por ser ela uma espécie de espelhamento de si, num processo dialógico de alteridade. A perífrase do lugar, Temor-de-Deus, remete ao universo religioso. Comumente associado ao respeito, à observância, à reverência, o temor de Deus ou temor a Deus é conhecido, pelos cristãos, como um dos sete dons do Espírito Santo. Dom que faz os cristãos se lembrarem da gratidão às tantas benevolências que Deus proporciona e, por isso, o respeito às coisas sagradas. Há várias passagens bíblicas alusivas ao temor do Senhor, normalmente atreladas a outro Dom do Espírito, a sabedoria: “O temor ao Senhor é o princípio da sabedoria. Os insensatos desprezam a sabedoria e a instrução” (Pr. 1, 7); “O temor ao Senhor é o começo da sabedoria; sábios são aqueles que o adoram” (Sl. 110, 10). A partir disso: do nome do espaço e do nome da protagonista, pode-se ler o conto “A menina de lá” dentro do campo religioso, mais precisamente na esfera do místico e do mítico.
Nhinhinha já nasce como um ser diferente, logo parece não pertencer a este mundo. Com o tempo, deixa de ser meramente a “tolinha”, a esquecida, para se tornar a reverenciada, a desejada. Seu trajeto singular de vida, distante dos costumes e ritos tradicionais, ganha destaque justamente pelo seu distintivo comportamento. Seus milagres que vão desde vulgaridades: querer ver sapo, até salvamentos curar a enfermidade da mãe; transformaram-na em uma heroína. A sua história de vida configura-se em lenda, ganha status fabuloso.
Nhinhinha traz a sabedoria incutida em seu nome, Maria; no lugar onde vive, Temor-de-Deus; e em sua condição de louca. Para Foucault, a “loucura é o lado desapercebido da ordem, que faz com que o homem venha a ser, mesmo contra a vontade, o instrumento de uma sabedoria cuja finalidade ele não conhece” (FOUCAULT, 2009, p. 179).
Nhinhinha nos ensina um saber invisível. Deixar o delírio, em seu sentido poético de lira tomar conta de nossa razão. Assim, que possamos viver neste “cá”, mas sem nos prendermos nele; pois é “lá”, lugar distante, que nos encontraremos todos nós, num mistério indecifrável, por ser tão humano.
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