“O que mais penso, texto e explico: todo-o-mundo é louco.
O senhor, eu, nós, as pessoas todas”.
(Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas, 1956)
Travessia. A magnitude da obra de João Guimarães Rosa consiste na pujante reflexão de suas palavras. Sua escrita singular, não só pela forma, mas pelo conteúdo é recorrentemente estudada, justamente pelo seu poder encantador. É praticamente impossível ler um conto de Rosa e sair dele da mesma forma que entrou. Assim como os seus personagens passam, na maioria das vezes, por um processo de revelação, os ledores também são submetidos a essa lei imposta pelo escritor.
“Sorôco, sua mãe, sua filha” é um desses contos que transformam o leitor, levando-o a reflexões acerca da vida. Mais precisamente é um conto que traz em seu cerne os temas da despedida, da fuga de si, do abandono, da dor de existir, da solidariedade, da loucura, do descaso, do amor... É um conto que nos transporta para o estado de ser do outro.
Apesar de o narrador se apresentar em terceira pessoa, portanto possuidor de onisciência, ele se une aos moradores: “A gente reparando, notava as diferenças”, “A gente se esfriou, se afundou – um instantâneo. A gente...”. O uso de “a gente”, além de marca coloquial, insere o autor-narrador como partícipe. É característico de Rosa esse narrador empático que não só acompanha os acontecimentos, observando-os, conhecendo-os, mas também os sentindo, vivenciando, experimentando as dores de suas personagens.
O tempo do enunciado é o mesmo da enunciação, num contínuo, cronológico, ação passada em um curto espaço temporal, o qual traz a metáfora de uma dor de vida inteira. O narrador, logo no início, situa esse tempo e espaço ao dizer que o vagão que levaria a mãe e filha de Sorôco estava parado “na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação”. A véspera nos remete a um tempo que antecede o dia do acontecimento mais importante. Uma espera certeira. Ao mencionar mais à frente que “o trem do sertão passava às 12h45m”, concluímos que as ações se realizam durante a manhã. Tudo muito bem centrado em um único lugar, em torno da estação de trem.
Refletindo acerca do espaço, algumas considerações são pertinentes. Estamos no sertão, lugar onde tudo acontece, metonimicamente universalizado pelo próprio escritor ao afirmar que “o sertão é do tamanho do mundo” (ROSA, 2001a, p. 89). As pessoas se ajuntam ao redor do carro para esperar. E da Rua de Baixo, Sorôco, sua mãe e sua filha caminham até o seu destino. O nome da rua onde mora a família traz a metáfora de sua condição: pessoas de baixo. Metáfora que será confirmada ao descrevê-las: “uma barba fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas”, “uma carapuça em cima dos espalhados cabelos”, “botara sua roupa melhor, os maltrapos”. São pessoas simples, humildes que vivem sem luxos, sem instruções ou grandes pretensões. Em um trecho, lê-se que a decisão de Sorôco de enviar seus únicos amores para tão longe não partiu propriamente dele, mas do povo, que também simples, não possuíam ajuda melhor: “Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências, de mercê”.
A loucura, pois, é o tema central de “Sorôco, sua mãe e sua filha”. Tema recorrente em outras obras de Guimarães Rosa. No conto em questão, Rosa nos faz pensar acerca do tratamento dado aos ditos loucos e o destino cruel a que eram submetidos, não com uma escrita ríspida e objetiva, mas com a suavidade poética que lhe era peculiar.
Também é possível ler no conto reflexões em torno da alteridade e da travessia do ser. A alternância, a mudança de imagens é
marcada pela oposição de elementos recorrentes no conto: loucura e sanidade, sertão e cidade, moça e velha, individual e coletivo, narrador e personagem, lar e hospício, casório e enterro...
A figura do trem é importante, pois conota o movimento, a travessia. O vagão, vindo do Rio de Janeiro, é um objeto diferente ao meio. Ele é a antítese do espaço sertanejo. E é esse objeto que ferirá o sertão com uma dor que só os que vivenciam a experiência podem entender. Esse objeto estranho ao meio encontra seu par nas duas mulheres que, mesmo fazendo parte do sertão, são tratadas como estranhas. E lá se vão para fazer a sua travessia. “O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre”. É chegado o
momento de Sorôco. Com o apito foi dada a partida. Ele se atravessa, todos se atravessam, pelas duas mulheres que se atravessam. Loucos e são se unem.
Destarte, a loucura é o movimento, é a metáfora do transcorrer de tudo, das transformações, das travessias da vida. O canto é a expressão de seres acorrentados a um universo incompreensível. Um estado de ser unicamente humano, distante do social que nos impõe limites. O trem apita e se vai para nunca mais. E ficamos nós todos sobre os trilos, buscando, no transcendente, explicações para o que jamais entenderemos: o homem.
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