A festa não bombava tanto assim. A goela de refrigerante já entupida. O malhado alto deu para experimentar novos sabores. Esqueceram de avisá-lo que, no Brasil, toma-se cerveja gelada; “peraí, tem que esquentar primeiro!”. O cara do corpo pintado começou um discurso filosófico envolvendo Sócrates, Tostão, Pelé; afinal, o Brasil perdeu a Copa. O biólogo tentava explicar a ação da cerveja no trato urinário. O homem do coração nas costas só pensava em sua garota a milhas de distância do sertão. Por fim, o rapaz de chapéu propôs uma caminhada, uma trilha entre serras e matas deste Cerradão, ansiava por um encontro natural.
Todos no trovão negro foram ao som de Nenhum de nós. Na entrada, cerimônias, solenidades, uma fitinha vermelha para ser cortada por alta autoridade. O biólogo lembrou-se dos seus tempos de travessura e teve de ser segurado; queria puxar a fitinha e sair pra galera. Adentraram, antes da solenidade, mas bem solenes. O homem do coração nas costas ia descrevendo a geografia das árvores e lembrando-se do corpo escultural de sua garota. O malhado alto apertava a latinha de cerveja nas mãos para esquentá-la. O biólogo de olho nas transeuntes refletia sobre o seu físico de cervejeiro. E o cara do corpo pintado procurava encontrar uma relação entre a caverna de Platão e a água de Mileto. Um pensamento normal.
O rapaz de chapéu ia à frente, desbravando a mata tal um indiana em busca de algum tesouro. No meio do caminho tinha uma ponte, tinha uma ponte no meio do caminho, tinha uma ponte, no meio do caminho tinha uma ponte. Nunca se esquecerão do medo do malhado alto que atravessou a ponte tremendo, pensando que iria cair. O homem do coração nas costas balança a ponte e o malhado alto sente sua barriga reagir. Mais à frente, os aventureiros tiveram que parar para o malhado alto adubar a terra. Passam duas garotas novas com câmeras fotográficas na mão. O biólogo tenta encantar, mas elas estavam mesmo era de olho no homem do coração nas costas. Por incrível que pareça, elas só viram suas costas, o coração estava longe. O cara do corpo pintando comenta algo sobre Freud e sobre o fort-da (viu um carretel no chão).
A trilha começa a ficar mais estreita, as camisas são tiradas, o suor começa a escorrer, e a subida se torna cada vez mais íngreme. O malhado alto não estava preparado para tal aventura com seu sapato envernizado, herança paterna. O biólogo trajava um esporte fino. Afinal estavam em uma festa. Só o rapaz de chapéu sempre pronto para situações aventureiras e, naquele dia, já predisposto. Perdem-se. Não há trilhas a serem seguidas. Obrigados a rasgarem o mato no peito, adentram em lugares nunca dantes adentrados. Encontram um velho restaurante destruído. O rapaz de chapéu recorda de sua infância. Já estivera ali e como boa criança vândala pichara o seu nome nas ruínas, deixando para a posteridade grande matéria de estudo. Afinal, não foi isso que os homens das cavernas fizeram?
O malhado alto avista um animal. Sente medo, começa a gritar: “É uma onça! é uma onça!”. Os outros se prontificam a averiguar. Nada mais que um burrinho também perdido. Por fim, como todo caminho leva a algum lugar, mesmo sem caminho, chegam a uma velha rampa também destruída. É claro que o moreno alto ficou com medo de pisar nas tábuas antigas. O cara do coração nas costas se prontifica a ir à frente, enfrentando uma caixa de maribondos que atingem seu peito. Desembestado correndo, esteve prestes a pular da rampa e se esbagaçar mato abaixo, mas o segura o biólogo que também corria dos bichinhos de ferrão. O rapaz de chapéu, tranquilamente, lançava ureia às plantas nativas. Via nisso uma ajuda, uma contribuição na dieta verde.
Bela paisagem, no topo da serra. Um macaquinho passa com algo preso em sua mão. Um outro mais idoso o acompanha como se estivesse rindo: “macaco velho não mete a mão em cumbuca”. No alto das árvores, alguns pássaros voando e cantando. Outros animaizinhos menores se mostram. Um sapu (jabu-preto) passa voando. Só foi percebido pelo rapaz de chapéu que acompanha o seu trajeto sereno. Belezas naturais e encantadoras. E o vento levou o chapéu do rapaz que o vê flutuar como uma ave preta tal o sapu. Um vento forte que deixa o moreno alto preocupado, fazendo-o sentar sobre a rampa. O chapéu voa e cai no meio do mato, num lugar inacessível. O rapaz, agora sem chapéu, acompanha o seu traçado no ar com pesar. Era impossível resgatá-lo. Cumprido o propósito, descem a serra com um espírito diferenciado. Voltam à festa.
O moreno alto experimenta a cerveja já totalmente quente. O homem do coração nas costas foi procurar uma pomada e ligar para sua garota. O biólogo foi se apresentar a umas moças que pareciam perdidas no ambiente. O cara do corpo pintado sentou-se em uma mesa e começou a escrever algo cujo conteúdo era de difícil entendimento, mas redigia com fluência. O rapaz, agora sem chapéu, olhava o local com pensamentos saudosistas. Um sapu sobrevoa a festa. Ninguém o percebe, exceto o rapaz sem chapéu que o olha fixamente. Sai da festa e tenta seguir o voo do pássaro. Percebe, então, que o sapu se dirige para a serra onde perdera o seu chapéu.
No dia seguinte, só, o rapaz volta a serra e faz todo o caminho antes trilhado com seus amigos. Na sua cabeça, sem chapéu, pensamentos estranhos. Encontra o sapu. Seria o mesmo da festa? Seria o mesmo do dia anterior na serra? Começa a voar em direção a rampa quebrada. O rapaz sem chapéu o segue e para bem no local de onde seu chapéu voara. Sente-se estranho, como se algo subliminar fosse acontecer. Um vento forte começa a soprar. O rapaz sente-se tonto, vacila, olha para o pássaro negro à sua frente e, misteriosamente, diz o sapu: “caia!”.