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Márcio Moraes
no leito solidário de uma floresta altiva descansem por favor a minha poesia
Textos

OLIVEIRA, Anelito de. Transtorno (1993/1996). Série Acontecimentos Criativos. Vol. 1. Belo Horizonte: Orobó Edições, 2012.

 

A poesia em transtorno

 

O Transtorno vem tarde, como tudo que transforma tarda. A década de 1990 riscou os versos reunidos neste século transtornado. É a poesia travessia de Anelito de Oliveira. Marca de uma passagem secular entre décadas. Acompanhado de A ocorrência e Mais que fogo compõem os “Acontecimentos Criativos” de um poeta em ruptura. Aqui, deixaremos, por enquanto, o fogo para uma ocorrência futura; primeiro, transtornemo-nos.

Sua epígrafe traz a cor de seus versos: “Tristezas de outros espaços,/ De outros céus, de outras esferas”. São as cruzes que já traçaram o simbolista catarinense, abrindo, ou melhor, fechando o tema de uma lavra. Inicia-se o instante de uma cidade que desconhece o tempo que se dissolve entre dedos de angústia. O sonho se cala como o azul no céu se esconde.

Sim, são versos à incógnita cruz-souseana e à maestria moderna da geração pós-concreta. 

A poética do olhar, do calar, do incômodo leva o poeta a arder-se, a queimar-se no mundo. Penetrar fundo no som mais inaudível e ouvir o silêncio cinzento de palavras que se veem no espelho. Esse é o norte dos versos de Oliveira, o qual se põe entre o mundo e a poesia. E para comungar os dois, usa as palavras que, muitas vezes, se precipitam “contra si mesmas como uma onda de luz num mar ausente”. A linguagem meta de um poeta.

A sua existência é um cansar de pensamentos, é um deserto de branca mudez, é um mergulho para dentro, um afogar nos sentidos. Fora do corpo é que não há perguntas nem respostas. Ó poeta, o que mais há neste mundo são perguntas com tantas respostas que não se cansam de gerar mais questionamentos. Eis o homem que pensa sem cabeça. E, então, o olhar que se revela ao voltar-se para o olhar. Os dias são escuros, opacos, infinitos como a noite.

No poema “tornar-se”, o poeta coloca em xeque o ler e o olhar a vida, numa construção visual de palavras que se “retornam”. Com essa lírica se finda a primeira caminhada de seu Transtorno, seguindo-se para outra via, o “Bar Cesário”. À mente leitora, a imagem do éter, guia de espíritos inquietos, mas também a imagem do poeta das impressões lusitanas da segunda metade do século XIX. A poesia que brota do cotidiano, do momento singular de um caminhar de poeta. Ou o bar é simplesmente o bar, na sua concretude de bar, como em Brasília. Se o bar é lá ou cá, o poeta nos dá suas pistas, abrindo-nos para um sonho que não existe, por enquanto. Uma poética de obnubilação que convida você, leitor, a voltar ao Bar Cesário para ver o crepúsculo de uma cidade em chamas infernais. É a urbe que torna pessoas coisas, entre pessoas que passam. E, então, o bar que nos bebe para esquecer o “doce otário” que somos e “fingir amanhã que tudo isso é legal”.

A paisagem primeira, ilusória ideia, se nega. Desenha-se a noite, a chuva, a manhã, o vazio silêncio por trás de vidros. E andar para trás, para dentro, para o fundo e girar como nada. Palavras se fragmentam na “som/bra”. O corvo de Poe no amarelo da janela. A letra magna exsurge depois de tudo imperiosa. “Depois da letra” é o poema. Num harmônico estético em quintilhas, a poesia da letra inverna tudo, abraçando sentidos. Árvores de uma floresta oca, cujas folhas caem no vazio, numa constante repetição, “máquina de Ecos”. A angústia persiste nos “tempos e todos os tempos” se “convergem para este quarto onde inferna esta hora”. Eis a poesia do não! Os óculos não ajudam a enxergar...

Antes da fúria assonante de um pensamento seco, a água de uma chuva grossa, penetrante e fria cai, em um poema retilíneo, monossilábico, como pingos, partidas palavras, dentro de uma concha para o amor nunca mais.

Fechando esses ramos de Oliveira, o irmão morto retorna memória de um abril ao som de “Brasília Blues”. Uma elegia que não perde seu tom denunciante diante de uma cidade de corações burgueses, “de um país de merda”. “Sob um crepúsculo chuvoso que nunca terá fim”, “abril é o mais cruel dos meses”.

... torno girando este Transtorno de anélito quente, suado, transtornado pela sina de todos nós, vida poesia...

 

Resenha publicada no jornal "Tribuna dos Geraes", Norte de Minas, In: Penas dos Geraes, p. 7, setembro de 2014.

Márcio Adriano Moraes
Enviado por Márcio Adriano Moraes em 24/01/2014
Alterado em 26/01/2024
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