Crônica publicada originalmente no jornal “O Norte” (Montes Claros-MG), dia 01 de agosto de 2009.
Cole bem pertinho
Estacionado em cima de um solo, aguardam ansiosos a partida. Ao lado de cada um, malas, sacolas, travesseiros, mãos dadas, alguns lábios colados, outros sedentos. Olhos vagam e se encontram, despistam, miram o desejo, fogem para dentro de si. Líquidos cristalinos convocados para suavizar a garganta estranha que arranha, que grita e que cala. Atraso inquietante, ânsia aumentada. Chega o trem sem trilhos e, no seu interior, são postas as bagagens; todas, menos a que é levada no peito e o travesseiro. Senta calmamente, e a poltrona ao seu lado não fica vazia, escolhida a companhia. Sem alternativa, mas querendo estar próximo, no aconchego dianteiro senta-se solitário.
As horas pareciam tardar mais que a pulsação normal dos tique-taques. Poucos estavam com a pulseira de Dumont. A modernidade faz retroagir os costumes, e dos bolsos tiram um objeto eletrônico que marca horas e que também possui outras utilidades. Não era ruim que o tempo fosse contra a sua cronologia habitual. Quanto maior o tempo ao lado dela, mesmo que não ao lado, a retina se alimentava.
Gravuras coladas em imagens virtuais. Registrar tudo era preciso, assim como navigare necesse est, vivere non necesse est. Pompeu o encoraja a ir à luta, e a cada parada uma nova aproximação. Contudo, o mistério que preenche a noite e faz todos se apagarem junto com o brilho solar convida ao repouso. Olhos se fecham, mesmo resistindo, e a visão maravilhosa do banco de trás cai em profundo sono. Bela adormecida. Impossível fechar os olhos para tão magna realeza, aliás, não se fecham nunca os olhos, estão sempre bem abertos, estão sempre da mesma forma. As pálpebras é que fecham as cortinas oculares.
De repente, letras começam a flutuar, sons poéticos perfuram os tímpanos e os olhos se abrem, agora verdadeiramente abertos para apreciar um museu de palavras. Bom saber degustar esta língua que permite moldá-la aos sentimentos. Não é necessário flash para tão magna claridade. E não há Camões ou Machados que se comparem a um ser dotado de sentimentos. As palavras são pronunciadas com os olhos e lidas com o coração.
Mesmo em plena guerra napoleônica, ele insiste em usar as únicas armas que possui, as palavras. Arcaicos símbolos do museu são ressuscitados e servem de gládios para abrir a fenda cardíaca. E estando entre livros, o clima romanesco se aflora ainda mais e, sem muito bem querer, as mãos se tocam, e os passos caminham entre mundos literários. Todos os outros centrados em um propósito profissional ou acadêmico; mas os dois visam a algo mais. Pobres dos primeiros, daqueles que só usam os contos de fadas para alimentar a imaginação. Estes tornam o conto de fadas uma ação.
E durante toda uma semana contagiante, de conhecimentos, de experiências muitas imagens foram coladas na retina. Livros lidos, feitos e escritos. E a separação primeira da ida se junta na volta. E ao lado se encontram o que por tempos ficou distante. Assim, foi feito e muito bem aceito. De olhares penetrantes a mãos atadas. Durante uma viagem repleta de música e poesia, cole bem pertinho os lábios nesta língua portuguesa e morena.
In: Ler-se(r), 2016, p. 81.