Ao longo do enredo de Clara dos Anjos, o leitor depara com descrições precisas do espaço suburbano. A geografia física do espaço, com suas ruas de chão e ladeiras; a arquitetura simples das casas; o rural e o urbano se comungando; o interior de casas, com seus cômodos e móveis, tudo isso é muito bem descrito por Lima Barreto em sua Clara dos Anjos. Soma-se a essa descrição do lugar, a percepção plástica das personagens, cor de pele, cabelos, olhos, rostos. Além disso, o aprofundamento psicológico, o qual revela os pensamentos das personagens, também é recurso usado pelo escritor mediante o discurso indireto-livre. Em seu livro, o escritor estampa uma imagem marginalizada, a qual deveria ser, inclusive, evitada para a época, já que o Rio de Janeiro passava por um processo de “europeização” espacial, em decorrência da Reforma Urbanística do prefeito Pereira Passos. A arte de Lima Barreto não segue a proposta de escritores burgueses para quem a literatura deveria ser “o sorriso da sociedade”. A literatura de Lima Barreto mostra “o choro da sociedade”.
Consciente da proposta do autor, o montes-clarense, Marcelo Lelis, seguindo o roteiro de Wander Antunes, procurou focar em suas ilustrações a condição racial e social apresentada no texto.
Apesar da preocupação verossímil de Lima Barreto em situar sua obra no espaço suburbano do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX, e de suas descrições, o autor não traz pormenores que são de fundamental importância para a adaptação em quadrinhos. O quadrinista, Marcelo Lelis, portanto, teve de recorrer a registros visuais históricos para buscar o espelho para sua criação. As fotografias de Augusto Malta, dessa época, foram importantes nesse processo. Contudo, Lelis teve de recorrer muito a sua imaginação para criar os ambientes, bem como os personagens.
Um trabalho de adaptação sempre envolve uma tradução. Se o adaptador quer se aproximar o máximo da obra adaptada ele recorrerá à paráfrase. Caso ele queira se afastar do original utilizará a paródia. No trabalho de Wander Antunes e Marcelo Lelis, percebemos o caráter parafrástico do livro, pois seguiram a ideia de Lima Barreto em seu romance Clara dos Anjos.
Como houve a transposição de um suporte (romance) para outro (quadrinho), muitos ajustes foram feitos. Dar imagem a um personagem, a um espaço, que outrora só existia na imaginação, requer um trabalho de pesquisa e criatividade.
Quando lemos o romance de Lima Barreto, imaginamos as feições das personagens de acordo com a nossa percepção analógica. A pureza e inocência de Clara podem ser associadas a uma amiga próxima; a malandragem de Cassi Jones àquele colega de escola insuportável e prepotente. Eis que surge o desafio do quadrinista, de dar rosto e corpo ao personagem, de maneira que não cause estranheza ao leitor já conhecedor da obra escrita. Em Clara dos Anjos, o roteirista e quadrinista conseguiram captar a essência das personagens e das temáticas exploradas por Lima Barreto. Assim, acreditamos que boa parte dos leitores – como nosso caso – identificou-se com as imagens do livro.
A imagem do subúrbio inicia e termina a obra. Isso é importante, pois o subúrbio foi o espaço em que viveu Lima Barreto e é o espaço do enredo, não só de Clara dos Anjos, mas de outras obras do autor. Isto é, um lugar muito querido por Lima Barreto, espaço que padece o descaso dos governantes e estigmas sociais. O racismo está presente no livro, bem como o preconceito social, o que também foi foco do romance. A condição da mulher de seu tempo, o desprestígio do poeta popular, a locomotiva como veículo de transporte suburbano, os jogos, a música, os bares, o cinema de entretenimento, tudo isso foi muito bem ilustrado.
A leitura de HQs proporciona ao leitor ativar outros sentidos e interagir com os textos e as imagens. Saber ler as HQs corretamente é fundamental para a apreensão da obra. O quadrinista, para transmitir suas intenções, utiliza os recursos característicos das HQs, como os requadros, balões, legendas, onomatopeias, metáforas visuais, close, com o intuito de dizer ao leitor o que deve ser dito e o que deve ser interpretado.
Por fim, Clara dos Anjos: história em quadrinhos, de Wander Antunes e Marcelo Lelis, é um livro que reflete sobre uma realidade do final do século XIX e início do século XX, por meio de uma linguagem bem próxima da contemporaneidade. Uma obra que traz novos olhares e amplia a difusão da literatura nacional de um grande clássico do Pré-modernismo brasileiro: Clara dos Anjos, do mulato, suburbano, escritor Lima Barreto.
Para ler uma análise completa e resolver questões sobre a obra, adquira o livro A cor negra da canção dos anjos.