Você está no quintal de sua casa, dentro de uma grande embarcação. Com essa embarcação, você faz grandes navegações. Você avista uma terra tropical e a batiza de Terra de Vera Cruz. Uma carta, vinda de Portugal, soprada pelo vento, bate em seu rosto. A carta pedia informação acerca da terra recém-descoberta. Você desce da embarcação e caminha, caminha por uma floresta cheia de pau-brasil até chegar a uma igreja. Você entra na igreja e veste uma batina preta, jesuítica. Agora você é o padre José e começa a celebrar uma missa em latim. Você catequiza os indígenas e orienta a formação espiritual dos colonos que estão na igreja.
Na sua concepção de padre jesuíta, você olha para o altar da igreja todo ornamentado de ouro com excesso de douramentos. Esculpindo o altar da Igreja com madeira e pedra-sabão está um aleijado. Atrás do altar há um grande canavial. Do meio das canas, você retira um barro. Esse barro era todo irregular, desequilibrado, desarmonioso e dramático. Uma parte do barro era clara, outra parte do barro era escura, muito contraditório e complexo. Esse barro lhe causa uma grande tensão espiritual. E você se torna uma pessoa do contra. Você olha para o céu e vê Deus na sua glória, olha para o chão e vê o homem na sua miséria. Olha para o lado e vê uma mulher nua, chamando-o ao pecado; olha para o outro lado e vê Nossa Senhora, para lhe dar o perdão. Vindo da boca do inferno, saindo do meio do mato, pula um poeta grego muito culto. Esse poeta grego lhe entrega uma arca.
Quando você abre essa arca, uma grande quantidade de luz ilumina sua racionalidade. Você então faz uma revolução. Foge da cidade e entra na arca toda coberta de minas de ouro. Você corta todo o excesso de sua vida e passa a ter uma aura média. Você coloca uma roupa branca de pastor grego. Agora você é um novo clássico e usa um falso nome: Cláudio. Você começa a guiar as ovelhas para a arca e vai tirando os seus dentes. Você coloca toda a natureza nessa arca e passa a ter uma vida bucólica, num local ameno, simples e tranquilo. Você passa a ter, então, uma vida equilibrada, harmônica e sóbria às margens épicas do rio Uruguai. Você passa a aproveitar o seu dia intensamente. Até que você sente fome e toma, em suas mãos, uma romã.
Você morde a romã e cai num sono profundo. Você está sonhando com uma guerra dramática. Essa guerra ocorre às margem do rio Ipiranga. Um homem saca sua espada e proclama a independência. Você vê o surgimento de uma nação em um dia. Nessa nação, aparecem indígenas idealizando uma mulher muito bela de cabelos pretos e lábios de mel. Essa mulher se chama Iracema. Você olha para debaixo de uma bananeira e vê um homem ultrabêbado e melancólico, usando um terno de casimira. Ele se sente derrotado e quer escapar da vida pela morte. Você vê homens praticando rituais satânicos e chupando limões no cemitério. Todos estão com tuberculose. É o mal desse século. Do chão surge um castro enorme. Esse castro sai da terra e cai em cima um navio negreiro. Nesse navio, estão escravos presos, balançando correntes e gritando: reforma! reforma! liberdade! liberdade. E então um condor leva você até o Rio de Janeiro em meio a urbanidade burguesa. Você vê uma moreninha se casando com um médico. Numa região mais distante, você vê a inocência de uma moça se entregando à morte diante de um visconde. Então, você se assusta e acorda para a realidade.
Você começa a olhar para o real Brasil republicano. Você vê homens e mulheres cometendo adultério. Uma ema passa por você e faz uma análise psicológica do comportamento do indivíduo burguês. Esse burguês casmurro age com interesse e razão. Você então vê cientistas evolucionistas fazendo experimentos sociais de forma determinada e positiva. Você olha para um lado e vê um mulato chupando limão no cortiço. No cortiço, há um coletivo de pessoas taradas, agindo por instinto. Um popular faz uma tese sobre o sexo animalesco com muito naturalismo. Você, querendo sair desse mundo natural, pega um machado e acerta sua própria cabeça. Depois da machadada, você acorda em Cuba dentro de uma galeria de arte.
Você anda por essa galeria de Arte pela Arte, apreciando obras tecnicamente perfeitas. Lê sonetos de rimas ricas, raras e preciosas. Você olha tudo e começa a fazer descrições com um vocabulário selecionado. Do monte parnaso, Musas clássicas se formam por mãos de ourives. Você, então, vê sobre um mármore um objeto esteticamente belo. Esse objeto é um vaso contendo dois lacres. Nesse vaso, há oliveiras, correias e muitos símbolos.
Você, então, vê símbolos sugestivos e misteriosos. Vê também símbolos musicais. Uma cruz bem clara, bem alva, cristalina aparece. Você vê uma mulher louca numa torre olhando para a lua. Essa lua está cheia de flores do mal lendo a psicanálise freudiana. Você se depara com um homem pessimista com impressão religiosa no meio da Guerra de Canudos.
Você agora é uma criança marginalizada na pré-escola dos sertões baianos e começa a escrever em forma de cunha. De repente aparece na sala de aula um caipira com um lobo de estimação o qual, num ato de ferocidade, corre atrás de um tatu. Esse tatu é um imigrante que foge com uma aranha para a terra de Canaã. Aí, um suburbano chupa limas prevendo o seu triste fim, até que é surpreendido por anjos com expressões monstruosas, armados com chibatas, vacinas e canudos, preparando-se para a sua primeira guerra.
Dentro de uma Van, você passa por uma ponte toda deformada que lhe causa uma angústia existencial muito grande. E aí você vê o Nosferatu com aquela expressão horripilante. Assustado, você dá um grito de horror. E, de repente, do céu despenca um cubo gigante que cai em cima de um pica-pau, o qual fica todo fragmentado geometricamente. Para colar seus pedaços, ele usa uma cola. Porém, a ave é atropelada por um automóvel em alta velocidade que passa destruindo o passado, destruindo museus. Esse carro se choca com uma marinete que vem do futuro. Dentro da marinete (ônibus) está um dado todo debochado e provocador. Esse dado, então, cai dentro de um urinol no qual um homem triste faz xixi. Esse homem vai para o sul do Brasil e começa a ter sonhos com relógios derretendo, até que é atendido por um psiquiatra chamado André que lhe sugere viajar para Salvador, na Bahia.
Você então vê tal homem pulando de um pau-andrade para um pau-brasil com chapéu de aba pura durante uma semana em São Paulo. Nessa cidade, embaixo da bandeira verde-amarela, você vê um bicho catando comida entre detritos. Esse bicho era um homem antropófago que devorava um índio preguiçoso que brincava de preto e branco no fundo da mata virgem. Esse homem também era um poeta popular e livre que fazia piadas de café com leite.
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Crônica revisada e ampliada. A versão original foi publicada no livro Ler-se(r), 2016, p. 118.