Ponto de mutação
O filme iniciou. A plateia era selecionada, uma plateia histórica. Rostos bem centrados na tela. O telefone toca, alguns conferem o celular, mas era no filme. Um homem que estava dormindo atende. O amigo do outro lado precisa de ajuda. Ainda era dia, fuso horário diferente. Encontro. O visitante apreciava a paisagem. O anfitrião num monólogo tedioso. Chegaram a um castelo medieval. Tudo a ver com a plateia histórica.
Diálogo em torno de política. Uma mulher aparece numa sala de tortura e começa a torturar a plateia. Pronto, de política passou-se para o destino da humanidade, floresta amazônica, camada de ozônio, carne bovina, cirrose, Sebastian Bach, prótons e elétrons, Shakespeare, a esfericidade da Terra, a filha bonita e o namorado. Tudo a ver com tudo. Conexão. James Cameron chegou atrasado com seu Avatar.
Só quem não estava conectado eram os acadêmicos. Um triálogo entre uma física, um político e um escritor dentro e ao redor de um castelo. Castelo lembra castro, logo Castro Alves, poeta dos escravos. Seria uma escravidão assistir a tal filme ou seria mesmo uma tortura? Voltamos ao Brasil Colonial. Não, temos opção. Apesar de nenhum atrativo tecnológico ou de enredo, era preciso ver o filme. Mas Cazuza estava certo: o tempo não para, o filme pararia na metade. O resto do sacrifício seria em casa. E qual foi a opção dos acadêmicos históricos. Bem essa é a melhor parte. Vale destacar que a sessão iniciou na hora da sesta.
Aqueles dotados de óculos escuros se acomodaram ao fundo da sala e ficaram de frente para o vídeo. Olhos fechados, camuflados pelas lentes. O sono e sonhos. Os que não tinham tal apetrecho tinham de segurar sobre o pescoço a cabeça fatigada que pendia para baixo num gesto típico de pescaria. Outros, mais ousados, preferiram deixar a sala para dormir na outra ao lado. Um se levantou, pediu licença para ir tomar água e não voltou. O mais curioso de todos abriu sua bolsa e retirou uma escova e pasta de dente. Foi para o banheiro fazer sua higiene pessoal por longos bons minutos. Escovar os dentes é uma terapia.
O diálogo monótono continuava na tela. Dois homens e uma mulher. Se fosse o famoso Três formas de amar, duvido que alguém cochilaria. Viva a trilha sonora deste clássico, viva o U2! Mas não estávamos vendo tal filme da década de 1990, trata-se de um dos anos 1980. E pensar que nessa década, muito dos acadêmicos históricos estavam nascendo, alguns antes dela. Vontade de desligar o dvd e mudar para o canal do Jaspion, He-Man, Cavalo de fogo, Ursinhos carinhosos ou Os Smurfs. Meu pai iria preferir Ultraman ou os filmes de John Wayne, Giuliano Gemma, Burt Lancaster (pronunciado por meu pai de forma bem singular como “busten alencaster”), Trinity (não o par de Neo, mas a dupla daquele gordo e magro do faroeste).
Chegada à metade do filme. Se a turma estivesse acordada diríamos “graças a Deus”. O professor levanta para desligar o televisor. Calmamente, os que estavam de óculos escuros retomam sua postura nas cadeiras. Uns três ou quatro, que não resistiram e estavam com a cabeça entre as mãos cochilando sobre o apoio (braço) da cadeira, levantam o rosto. Alguém saiu para chamar os que estavam “babando” na sala ao lado. O da escova de dente volta do banheiro com um hálito mais que puro.
Mas nem tudo estava resolvido. A tortura ainda estava longe de acabar. O dever de casa: terminar de assistir ao filme, fazer uma resenha, apresentá-la na próxima aula. Debate em grupo sobre o filme. Os acadêmicos históricos se olham, já não eram mais os mesmos, chegaram ao seu ponto de mutação. Era o filme? Ou era o fim?