Conto publicado no jornal “O Norte”, Montes Claros-MG, dia 27 de agosto de 2008
Quimera
Caminhava desolado sobre um arcaico forrageiro. Não havia rês nem flores doces como nos dias de intensa luz solar. Percebia apenas pequenas gotas de folhas dissipadas pelo vento sem nenhum interesse definido. Assim correram-se os dias. Todas as manhãs, abria a janela da velha casa e olhava para o gramado verde. Como era verde. Talvez o verde seja a cor mais intensa que os olhos podem enxergar. Mas os olhos não enxergam senão aquilo que o cérebro quer ver. Portanto, não era a cor realmente que fascinava, era simplesmente o encéfalo dizendo o que deveria ser admirado. Sobre o mesmo forrageiro sempre verde, dava passos tranqüilos, sem preocupar com intromissões da natureza. Pode ser que alguma borboleta azul, dessas que convidam a morrer no suave azul de sua asa ou numa árvore de Oliva, alerte para mais um dia que se acaba sem se pensar no dia.
A casa continua no mesmo lugar. A janela se abre freqüentemente. Porém, a caminhada não é feita com mais prazer. Melhor ficar sentado em um sofá escuro bem no centro da sala que cavalgar sem rédeas um cavalo qualquer. Era preciso. Refletir sobre os dias passados era preciso. Navegar não é preciso, muito menos viver. Mas refletir necesse est. Para mergulhar em mares nunca d’antes navegados é preciso refletir. E o que é a reflexão senão maltratar o cérebro já tão surrado de pensar em vão as coisas deste mundo perecível. Porque o refletir tanta perícia, tanta requer que para tal ofício não há trabalhadores aptos em lugar qualquer.
As gramíneas, outrora tão verdezinhas, deixaram a cor amarela deitar por cima e ir penetrando tão forte como o desejo da fecundação. O verde acabou. Por isso, pensava em não sair mais de casa. Ficava sentado na poltrona escura. Sair para fora significa ver o tempo passar. Ver o verde amarelar. Quem dera se fosse um amarelo solar lustroso! Mas é um amarelo desbotado que tange a superfície de um campo outrora belo. A beleza não é passageira, a beleza é eterna dentro de um tempo. Todo o mistério não está no mundo, não está no forrageiro, o mistério está é na mente. O passado tampouco existe, quem dirá do futuro e muito menos presente. O que existe é isto que não deve ser nomeado. Quando se diz algo já é passado. E o passado só pode ser visitado na lembrança. As fotografias, os vídeos, as ilustrações não são representação do passado. São meros objetos como uma caneta e um pedaço de papel. O passado não pode ser representado, simplesmente por que não existe.
Sentado em uma poltrona macia. E assim era preciso ficar. Ficar. Ficar. Até virar escaras. Qual a razão de se dar valor ao valor? Entendia bem que o fogo só queima enquanto existe ar, ou seja, enquanto existe vida. Acabando-se a vida, acaba-se o fogo. Extinto o fogo, que alimenta a estrela, extirpar-se o mundo já caduco. Quem já viveu mais que o mundo? É hora de pedir contas e repousar eternamente. Só assim a paz poderá ser sentida. Se esperasse a paz, quem sabe a guerra não triunfaria? É necessário guerrear, mas não com os outros e sim consigo. A melhor batalha é aquela que não tem fim, que sempre empunha armas e sempre se defende. Fazer da vida uma batalha sem fim é o que almeja desde os anos do esquecimento global.
Não, a loucura faz parte da vida, como a vida faz parte da morte. Ou seria o contrário. A morte faz parte da vida? E o que é a vida senão o caminho para a morte. Há muito tempo o verde acabou, o quente esfriou e o ente voou. Para deixar os dias seguirem livres é preciso esquecê-los, não guardá-los em uma agenda. Em um bolso não cabem tantas chaves. Por isso, deixar as portar abertas é um bom passo para agilizar a entrada. Mas ninguém quer entrar, porque dói. Não uma dor física, sanada por antiinflamatórios, mas uma dor psíquica, incurável e perene.