Crônica publicada no jornal “O Norte”, Montes Claros-MG, dia 20 de agosto de 2008.
Em cima da ponte
Existe uma considerável distância entre a parte superior e inferior de uma ponte. Não apenas física, mas também em matéria de espírito humano. É comum confundir pontes com viadutos e passarelas. É difícil se abrigar debaixo de uma ponte, as águas atrapalham, mas sob outras construções que servem de passagem, às vezes há um lar. Ponte aqui seja entendida de forma genérica. Contudo, no caso, era uma ponte mesmo. E sobre ela, talvez pela primeira vez, houve um magno gesto de afeto humano. Porém, abaixo dela, resíduos humanos...
Um cheiro acérrimo preenchia todo o ambiente. Se Jean-Baptiste Grenouille fosse o personagem desta história, certamente o seu nariz acusaria outros perfumes, entretanto o protagonista de Patrick Süskind está lá no século XVIII. Mas quando seres se entregam ao gozo mútuo, qualquer cheiro, por mais desabrido que seja, é anulado pelas narinas. Apenas as essências dos corpos são sentidas e sugadas não só pelo nariz, mas por todos os poros. Uma mistura de odores capaz de causar inveja a qualquer perfumista, pelo simples fato de ser ímpar e impossível de ser abrigada em nenhum cântaro.
Um local nada ideal para demonstrar o encanto das estrelas. Os encontros joviais que transmitem notas de um allegro quase presto ocorrem em cenários aconchegantes e plácidos. O que é isso... mentira descabida! Não há local ideal para hilaridade, os espaços transformam-se de acordo com o desejo do peito. Seja em um belo jardim ou em pântano, quando os olhos visam o céu, basta afastar as nuvens escuras que encobrem as retinas para enxergar as estrelas. Assim, em cima da ponte é um bom lugar para degustar momentos singulares da vida. E em baixo dela... também...
Não era um límpido rio que passava debaixo da ponte. Dejetos humanos e não humanos eram os componentes daquelas águas. Ali estariam pedaços de vidas, fragmentos de tristezas e alegrias. Aquele restinho de vinho, degustado por companheiros íntimos, escorrido pelos canos da pia, estava ali debaixo da ponte. Secreções oriundas da cavidade nasal, após momentos de pratos por causa de uma discussão, também estavam ali debaixo da ponte. Mas há a presença real daqueles que vivem debaixo da ponte. Daqueles que olham para o céu não para admirar as estrelas, mas para terem uma esperança.
Em cima da ponte, passem veículos que maltratam o ar, passem pessoas que respiram o ar, passem animais que desconhecem o ar; mas que passem, sobretudo, amantes que perfumem o ar. Em baixo da ponte, passem sobras humanas que levam alegrias naufragadas, que levam tristezas não almejadas, dores necessárias; mas que passem, principalmente, pessoas que sempre viram estrelas, mas que ainda não as apreciaram. E que essas pessoas realmente passem debaixo da ponte, e não fiquem ali, passem apenas para chegar à outra margem da vida.