Conto publicada no jornal “O Norte”, dia 18 de abril de 2010
A hora do delírio
O caminho era longo como os braços que desejavam alcançar o corpo distante. Mas apesar do trajeto nada fácil, os primeiros passos foram dados com perseverança. Destino desconhecido para aqueles que apenas acompanham com os olhos a rotação dos ponteiros. O vento com seu livre arbítrio não direcionava a sua corrente de ar, de forma que ora o rosto saciava-se com o cheiro de terra molhada trazido por Eólo, ora sentia uma rajada que impulsionava para frente.
Pensava a todo instante naquele corpo que deveria esperar. Chegar o mais rápido possível ao destino, sem atinar para o tino. Com uma camisa branca e um chapéu de palha, o trajeto foi percorrido, ou melhor, iniciado. E mesmo com a ânsia destruidora do corpo, das vontades espirituais e carnais, a caminhada foi realizada sem a corrida habitual. Com os pés no solo árido daquele terreno distante da civilização, o interior era preenchido de reflexões passadas, presentes e futuras. Lançando pedras ao ar, a maior parte do tempo de olhos cerrados, serrando os punhos e deixando escorrer o sangue. Maneira estranha de marcar um caminho. Pães não havia no tiracolo. Era preciso interagir com o meio, registrar a passagem terrena feita sobre uma rena imaginária, ao som de uma bela ária.
Ela vinha indistinta tal uma clandestina no espelho traidor da memória. Bom seria apagar da retina as imagens infiéis e verdadeiras, mantendo apenas a ficcionalidade benéfica criadora dos sonhos. Ingrata e sem graça é a decisão cerebral. Maldita seja a descoberta de Cabral! Percebe-se com dor que o apagador não é capaz de apagar a dor, essa constante da vida mundana que vem com juros a pagar. Via-a inconfundível no pano fúnebre das reminiscências. E como a adorava, e como a desejava, ainda que sua beleza fosse causa de desgraça.
Não podia parar, deveria seguir estas pegadas deixadas na via crucis para poder alcançar o cume do desejo humano. Aquele corpo incorruptível que só se obtém após transpor esta via. É verdade que não faltaram pedras no caminho. Seres gritando vida, implorando para a permanência inerte neste mundo. Jamais alguém chegará ao fundo se não se doar a si mesmo. Mas todos só conseguem enxergar a si mesmos quando os nadas assim acusam a existência de algo a se enxergar. Maldita Bemdita Vida!
Seguir fatigado, lançando dados e pulando as quadras. Ah, como será bom tê-la nos braços, como será bom alcançá-la! Retamente, seguindo esta reta ainda que esférica estrada para um dia gozar a mais desejada da gente. A hora do delírio do poente caminheiro. Preencha sempre o cérebro com sua existência. Chame, Grite! Não importa a distância que separa os corpos podres que todos trazem. Ah, Quintana, será verdade o seu baú de espantos: “Tão bom morrer de amor! e continuar vivendo...” não seria, talvez: tão bom viver de amor! e continuar morrendo...