Conto publicado no jornal “O Norte”, Montes Claros-MG, dia 14 de julho de 2010.
Entre camas
Foi impossível negar o convite. O celular tocou aquela musiquinha repleta de trinados e mordentes, estilo barroco bem allegro. Eram elas, as primas. Como os pais das moças viajaram, passariam à noite sozinhas em casa e resolveram convidar uma presença masculina. Apesar de terem cachorro, o homem macho sempre traz psicologicamente uma segurança mais eficiente. Não houve como negar o pedido, pronta a mochila com duas mudas de roupas, partida.
Muito bem recebido pelas duas as quais pareciam dois pequenos anjos de tão delicadas, peles e olhos inocentes. Essa comparação angelical é milenar na cultura humana, ainda que anjos não tenham pele e, quem sabe, nem olhos inocentes. Em cima da mesa, copos com refrigerantes. Como estava tomando suco, para mortificação durante o período quaresmal, era preciso suco. A prima mais nova prontamente se dispôs a fazer uma limonada suíça bem brasileira. A mais velha sugeriu uma pizza. A mais nova completou trazendo nas mãos um filme “Verdade nua e crua”. E o papo rendeu boas horas.
Avançado o tempo e como tinha horário marcado na manhã seguinte, o convite ao repouso. Só havia dois quartos na casa, o dos pais e o delas. Violar o santuário de um casal seria um pecado mortal. Dormir na sala seria uma possibilidade, mas as garotas se opuseram. O jeito foi repousar o corpo fatigado em um colchão entre as camas das duas. Tirar a camisa para dormir é quase uma regra masculina que deve ser seguida à risca. Ficar só de cueca seria uma apelação, então um bom shortinho resolveu todo o problema. Salve o inventor do babydoll. As primas com aquelas cores vibrantes, um vermelho vinho e um roxo bem escuro, converteram suas feições celestes em tentações demoníacas. Do chão, apenas com um lençol para fingir cobrir o corpo, era possível apreciar tais beldades uma de cada lado, bastava girar o pescoço.
O sono bateu devagar nas pálpebras e os olhos não resistiram. Todos em plenos sonhos. De repente, por cima um hálito frio e gostoso, mãos percorrendo todo o corpo, a reação foi não resistir à reação. Seria qual das primas? Os lábios se tocaram. Os corpos começaram a se atar como a seguir um ato, tal maquinista impossibilitado de frear um trem que começava a engatar. Mas só sentia o corpo de uma, a outra deveria estar na cama. E se o barulho a acordasse? Seria convidada para essa intimidade... explosão de êxtase. Nunca pensaria que a prima fosse tão quente, que por trás da timidez límpida de sua pele, escondesse um ser lúbrico.
Na manhã, depois de secado o suor, as primas desejam bom dia. A cordialidade foi retribuída. Como eram muito parecidas, seria perigoso ousar uma insinuação do ocorrido durante a noite. Tinha de esperar algum olhar, alguma atitude que denunciasse a culpada. Ambas agiram naturalmente. Teria sonhado? Certamente, não. Foi real, ainda tinha no corpo o sabor feminino. Mas por que a ousada não se revelou? Os pais chegaram.
A caminhada de volta foi marcada por um gostinho de quero mais sem saber de quem. Deveria interrogar uma das primas? E se errasse a cartada? E se acertasse e recebesse como retribuição um apenas: “foi só distração momentânea”. Estaria apaixonado pelas duas? Afinal uma relação tão intensa como essa era raridade nesta vida marcada pela regularidade. Qual seria a verdade? Qual das duas estaria crua ali no colchão por entre camas?
Quase um mês depois do ocorrido, não houve mais diálogo com as primas. Elas simplesmente desapareceram. A razão é desconhecida. A vida continuou na mesma rotina, com o acréscimo daquela noite. De repente, após assistir a um filme não tão verdadeiro, mas bem assado, o telefone toca a mesma musiquinha. Eram as primas. Os pais haviam viajado novamente. Agora, sim, era preciso tomar uma atitude. É atendido o telefone, o mesmo convite. E a resposta: não.