× Capa Meu Diário Textos Áudios E-books Fotos Perfil Livros à Venda Prêmios Livro de Visitas Contato Links
Márcio Moraes
no leito solidário de uma floresta altiva descansem por favor a minha poesia
Textos

MARTINS, Andrea. Apenas rascunhos: narrativas curtas e médias. São Paulo: Catrumano, 2013. 

 

As narrativas curtas e médias de Apenas Rascunhos


“A vida nada mais é do que uma sucessão de narrativas curtas e médias, raramente longas”. Ensina-nos Andrea Martins em seus rascunhos que são verdadeiras películas de dramas amorosos. Suas histórias são humanas e apenas humanas. Encontros e desencontros. A frustração de não sermos totalmente guias de nós mesmos, em busca de um risco de felicidade plena. Nessa linha, na qual todos caminhamos, contamos sempre com a mão do outro, daquele que nos preenche, que nos completa. Porém, mesmo que façamos escolhas, não são elas que nos selecionam, mas sim a confluência de duas pessoas. Afinal, o nosso par amoroso também deve nos escolher. Mas há ainda outro porém; uma terceira escolha, o veredito, que é mistério, à qual todos estamos sujeitos.

A primeira narrativa de Apenas rascunhos sintetiza as demais: “desencontros”. Isto é, todos os outros textos giram em torno de encontros e desencontros. Nesse texto, duas amigas diferentes em personalidades, mas que possuem o mesmo desejo: encontrar um companheiro ideal. Do outro lado, dois amigos solteiros que preencheriam perfeitamente o vazio das duas mulheres. Com a manutenção de foco narrativo em terceira pessoa, o narrador cria situações em que eles poderiam se encontrar, num cinema, num bar dançante. Cruzam-se, apenas. Os olhos de um observam o outro, mas não avançam. Os amigos se interagem com determinadas mulheres; as amigas, com determinados homens. Contudo, não são os “predestinados”. E a vida é assim, cruzamos o tempo todo com o nosso amor, e despercebidos, lançamos nossas flechas nos alvos errados.

Ante o medo dos marinheiros em se aventurem numa grande travessia marítima, o general romano Pompeu teria proferido esta frase: “navigare necesse; vivere non est necesse”. Séculos depois, o escritor português Fernando Pessoa a consagrou em uma de suas poesias: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Hoje, navegar deixou de ser uma ação praticada em águas profundas e passou à virtualidade de uma tela. A protagonista do conto “navegar é preciso”, narrado em terceira pessoa, sabe muito bem disso. Mulher de meia idade, à espera de um grande amor, aventura-se em sites de relacionamento. De tanto navegar, e pouco viver; recusando convites da irmã para conhecer presencialmente um amigo desquitado, a protagonista conhece o “cowboy de seu rebanho”. Assim, da troca de e-mails e fotografias ao encontro “ao vivo”. Viajaram, se divertiram, ele era um cavalheiro. Mas, na hora de pagar a conta (parece até piada de bar), vem a desculpa: não tinha dinheiro. Na verdade, esperava o pagamento da venda de uma boiada que não se realizou no tempo previsto. A marinheira-amante, então, teve de arcar com tudo. Mas como dito, era um cavalheiro, e restituiu todo o dinheiro, com um depósito em conta. Ela tinha acertado em sua escolha. Mas não, era um golpe. Cheques sem fundo. E a polícia prende o golpista. Diferentemente do general Pompeu, que, com precisão, conseguiu concluir sua navegação; a nossa protagonista naufragou em seu sonho virtual. No entanto, nem tudo são tormentas; finalmente aceitou o convite da irmã para conhecer o desquitado.

O realismo mágico ou a narrativa fantástica está em “os pés fora do chão”. Inicia-se com esse conto, uma série de textos narrados em primeira pessoa. Este é, contudo, o único narrado por uma voz masculina. O protagonista apaixona-se por uma moça aparentemente humilde durante um passeio pela lagoa da Pampulha em Belo Horizonte. Depois de alguns encontros, deseja realizar o sonho da garota e assumir um compromisso amoroso. Ao viajar de Brasília a Belo Horizonte, passa por um acidente na BR-040. Em BH, não encontra sua paixão. Com a ajuda do velho barqueiro, descobre toda a verdade de sua amada que, após o término de um casamento de interesses, se passava por pobre para atrair sentimentos verdadeiros. Infelizmente, já era tarde demais, pois ela fora a vítima do fatídico acidente que lhe cruzou a estrada. Desesperado, o narrador ruma em direção ao ponto da tragédia e num lance de loucura e amor vai ao encontro de sua amada. O conto termina sugerindo uma fatalidade, isto é, a morte do narrador. Eis o fantástico da trama, pois se ele morreu, quem está contando a história? A tragicidade desse relato lembra dramas gregos, bem como peças de Shakespeare. A concretização amorosa, semelhantemente a Romeu e Julieta, só ocorrerá no transcendente, com os pés, literalmente, fora do chão.

A dúvida acerca da paternidade é um dos temas do conto “uma história singular”. Diferentemente dos outros textos, um narrador feminino relata a trajetória de sua vida marcada pela presença misteriosa de um homem que sempre lhe estendeu a mão quando precisou. Abandonada pelo pai, a protagonista contou com o carinho deste estranho, cuja identidade não é revelada no texto. Apresentou-se como um amigo do pai, prometendo a este sempre dar assistência a sua filha. Contudo, fica explícita a apreciação desse amigo pela mãe da protagonista, deixando essa sugestão: seria ele apenas amigo ou seu verdadeiro pai? O término do casamento dos pais confirma a linha temática direcionada pela autora, isto é, frustrações amorosas.

O conto “espera” está mais para uma crônica, sobretudo, pelo seu caráter irônico e humorístico. Num consultório oftalmológico, a protagonista, detentora da voz narrativa, se vê entre duas senhoras idosas, sendo uma, a sogra; e a outra, a nora de cem anos. O namorado tinha 35 anos. A diferença de idade sempre é vista como um jogo de interesses. Mas, normalmente, para o lado dos que se ama, isso quase nunca é creditado. Era o caso da senhora e seu amado. O conto, no entanto, não discorre sobre essa relação que, sem dúvida, não será longa nem média. O cerne da história é a eventual aproximação das duas senhoras com a protagonista. Elas começam a conversar com uma estranha e a partilhar vivências familiares, mostrando fotografias de parentes. A protagonista chega a pedir internamente “pelo amor de Deus” para que parem de falar. Duas senhoras já condenadas pelo vírus mortal da impaciência. Muitas vezes, o que as pessoas querem é conversar, despretensiosamente, como seres comunicativos que somos. Todavia, a nossa casmurrice e falta de tempo para parar e ouvir o outro é um dos males de nossa contemporaneidade, o que comumente pode nos levar a jamais encontrar com aquela pessoa que se tornaria especial em nossas vidas.  

Essas são as cinco narrativas curtas. A primeira média é a que dá título ao livro: “apenas rascunhos”. Seguindo a escrita feminina, a voz narrativa é de uma mulher que, após deixar sua cidadezinha do interior, encontra-se na capital mineira. É um conto de reflexão existencial, apontando para as mudanças de comportamentos que, geralmente, assumimos para parecer mais sociável nos lugares em que estamos. É nesse conto que fica evidente a escrita cinematográfica da autora. O uso da descrição e dos apelos imagéticos torna o texto um verdadeiro roteiro de cinema. Essa referência aparece explícita no corpo do texto, além do seu caráter metalinguístico. O evento motivador da construção do texto é a celebração de um réveillon. Antes de viajar para a festa de ano novo no sítio da família, a protagonista decide apagar com chamas seus escritos joviais, ou seja, seus diários. A narradora apresenta algumas confissões desses diários que sempre começavam com a indicação do ano, o lugar, o momento, as pessoas envolvidas e o acontecimento. Vê-se, nessa forma de escrita, uma espécie de roteiro de cinema, no qual se determina os principais elementos de uma trama: espaço, tempo, personagens e ação. Praticamente todos eles relatavam experiências amorosas frustrantes: “tudo que escrevi até agora são apenas rascunhos de amores curtos e médios, iguais a tantos outros, sem força suficiente para se concretizarem na tela ou fora dela”. Ironicamente, o último rapaz com quem a protagonista se relaciona lhe dá de presente um diário, justo depois de ela ter desfeito dos seus antigos escritos. A conclusão desse conto é belíssima e aforística: “gostei do presente, mas vou mantê-lo assim, sempre novo, em branco... pois a melhor história de amor, penso eu, é a que está sempre por ser escrita, porque essa nunca acaba”.

O penúltimo texto é o relato de uma mulher após ouvir da pessoa que se ama estas palavras: “você nem é tão importante assim”, que intitula o conto. O tom de indignação, e ao mesmo tempo melancólico, dá a essa narrativa o seu caráter de “purgação”. As palavras servem como uma forma de alívio de tensões. A narrativa descreve a decepcionante entrega de uma mulher a um homem que chegou a trocar seu nome por de outra mulher no instante em que estão se amando. As palavras lhe saem sem tropeços, como numa espécie de “descarrego” de uma mágoa. Ao final fica a superação de um trauma, afinal “ele também nem era tão importante assim”.

Sem dúvidas, a última narrativa média brinda o leitor com uma trama envolvente, “histórias cruzadas”. São três histórias, cujos protagonistas se relacionam amorosamente, num “mister” de paixão e pecado. A primeira história é a da filha, a qual desperta sua sensualidade quando menina nos fundos do colégio, em “amassos” com um colega. Sua narração gira em torno de sua ânsia por amor. Encontra na mãe uma espécie de barreira, já que esta se mostrava muito religiosa e conservadora. Em suas memorações, traz à tona seus primeiros relacionamentos, culminando no desejo proibido pelo padre recém-chegado à sua paróquia. Uma lacuna aparece em seu relato, a morte do pai, durante o Regime Militar. Um pai cuja memória estava associada à dedicação e carinho. Após a morte da mãe, a filha encontra no padre o seu refúgio, acabando por envolver-se amorosamente com ele, causando tanto impacto sentimental que o reverendo pensa em largar a batina. É nesse momento que a filha encontra um caderno velho de sua mãe com a inscrição: confissões.

Esse caderno foi lido pelo padre-amante. A história da mãe vai de encontro ao seu aparente comportamento conservador. Como numa espécie de diário confessional, ela relata como despertou para a sensualidade quando menina até o seu casamento arranjado. Apesar de ter um bom marido, as relações amorosas não pareciam ser satisfatórias para ela. Até que conheceu o coroinha de sua igreja, muito, mas muito mais jovem do que ela. E foi com esse garoto que conheceu o sabor de uma verdadeira relação. Após a partida do coroinha, ela se vê grávida. E então a dúvida, estaria grávida do seu marido ou de seu jovem amante?

Após ler a história da mãe, o padre, que se relacionava com a filha, vê o seu destino traçado por essa surpreendente revelação. Seu relato se inicia com a denúncia da concupiscência clerical, descrevendo os abusos que seus colegas seminaristas se sujeitavam nas mãos de padres pederastas. Em seguida, lembra-se de seu tempo de coroinha e de como conheceu a mãe. Fatalmente a dúvida, estaria ele cometendo um incesto, se envolvendo com sua própria filha? Ao saber do relato da mãe, a filha quis saber a verdade e com uma tocha de cabelo do padre viajou para fazer o DNA. Lamentavelmente, o ônibus que a transportava acidentou-se, e ela ficou em estado de coma. O conto termina com a confissão do padre, causador “das mortes” das mulheres que amou, mãe e filha. Em suas mãos, o resultado do DNA, lacrado, o qual só será aberto após o despertar da “filha-amante”.

Em Apenas rascunhos não há espaço para finais felizes. Com uma linguagem fluida, simples e clara, a autora destaca a fragilidade dos relacionamentos amorosos. Suas expectativas, suas aventuras e suas frustrações. O predomínio de vozes femininas destaca a existência de mulheres solitárias em busca de um complemento. Essa complementação deveria ser sempre preenchida com um amor verdadeiro. Mas eis o ensinamento do livro, essa espera, por um amor ideal, na verdade, é privilégio de contos de fadas. A vida, que não permite rascunhos, é uma pintura que não permite retoques. Por isso, não devemos ficar sentados apreciando nossas cenas projetadas numa tela de cinema. O espetáculo da vida está nela mesma, que não é ensaiada, e que nos surpreende com encontros e desencontros, com paixões e frustrações, deixando nas páginas de um longo livro a nossa história.

Márcio Adriano Moraes
Enviado por Márcio Adriano Moraes em 14/11/2015
Alterado em 26/01/2024
Comentários